Martinho Lutero foi, sem dúvida, um revolucionário. Foi ele que disse: “Confiem em Deus, não nos ‘autonomeados’ intérpretes de Deus.” Tal afirmação desafiadora à poderosíssima Igreja Católica Romana, com seu séquito interminável de exegetas da lei divina, hierarquicamente distribuídos em diversas funções eclesiásticas, muito tinha a ver com um tremendo feito do monge agostiniano: ele, em 1522, publicara a primeira versão vernácula, isto é, na língua do povo, do Novo Testamento na Alemanha.

A tradução da Bíblia para uma língua nacional aproximava bastante os fiéis da palavra de Deus. Era necessário apenas saber ler. Assim, o texto bíblico estava ao alcance do lavrador, do pescador, da dona de casa, dos homens simples do povo. Esse ato subversivo foi algo devastador para o poder tradicional da Igreja e representou um avanço incomensurável para o movimento protestante de Reforma, repercutindo na pátria de Shakespeare.

Na Inglaterra, foi a política que forjou a busca por uma Bíblia nacional. O Rei James (ou Jaime, ou Tiago, aportuguesando), sucessor da Rainha Elizabeth, necessitava afastar-se das cerimônias profundamente ritualísticas de Roma proferidas em latim e da Bíblia “oficial”, igualmente em latim. Imersos em celeumas religiosas com os papas desde o reinado de Henrique VIII, passando por cinco anos de terror e perseguição aos puritanos protestantes com o fanatismo católico da Rainha Mary Stuart, os ingleses precisavam pacificar e estabilizar o país, consolidando a Reforma e rompendo com a Igreja Católica Romana, afirmando sua independência do poder papal.

As traduções inglesas até chegarem à Bíblia do Rei James seguiram a iniciativa de Lutero. A versão autorizada pelo monarca foi uma obra de gestação demorada: foram formadas seis comissões de estudiosos, compostas pelos conhecimentos especializados de cerca de cinquenta eruditos. Apesar dessa enorme plêiade, estima-se que 80% da versão do Rei James seja uma reprodução ipsis litteris da tradução, décadas antes, de um homem de grande fé e conhecimento chamado William Tyndale, uma espécie de Shakespeare do texto bíblico inglês, por seu talento, estilo e extrema inteligência utilizados em sua tradução. Discípulo intelectual de Lutero, Tyndale também muito perseguido, dentro e fora da Inglaterra, por suas críticas contundentes ao que chamava de “papismo”.

E foi assim que nasceu o livro dos livros, dentro da literatura inglesa e mundial. Embora muitos não confiram à Bíblia valor literário – o que é uma inegável ignorância -, a Bíblia do Rei James, publicada pela primeira vez em 1611, é a obra mais lida do cânone literário inglês, sendo, ainda, no mundo inteiro, a versão mais popular do Livro Sagrado. Foi ela um dos principais fatores do avanço do movimento protestante. Além disso, sua qualidade literária é excepcional, quando comparada a outras versões em inglês e de outras nações. Nada que desagradasse a Lutero, afinal de contas fora ele o mentor de Tyndale.

Thiago Andrade Macedo: escritor infiltrado no serviço público federal, advogado não militante, autor do romance policial, psicológico e filosófico O Silêncio das Sombras, também atuou como articulista do jornal A União; filho de pernambucanos nascido nas Minas Gerais, atualmente é um ex-nômade radicado em João Pessoa, Paraíba.

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