Pediram-me, há anos – acho que foi o Joedson Adriano -, um conto a partir do poema O SOLITÁRIO, de Augusto dos Anjos. Reli os primeiros versos:

– Como um fantasma que se refugia na solidão da natureza morta, por trás dos ermos túmulos, um dia eu fui refugiar-me à tua porta!

A alma de Lenora dO CORVO, de Poe, percebi, deslumbrado.
Foi impossível não lembrar que há uma correspondência, também, do poema “Debaixo do Tamarindo” com o “Sonnet: to Science”, que termina falando em “beneath the tamarind tree?” – “debaixo do pé de tamarindo?” E Augusto tem o soneto “O Deus-Verme”, enquanto Poe compõe “The Conqueror Worm”. Tem “Solitário” e o outro, “Alone”.

O primeiro verso dO CORVO:

– Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary…

Poe pensara “O Corvo” como “an adult fairy tale”, um conto de fadas adulto. Como toda história infantil começa com “Once upon a time”, ou “Era uma vez”, “C´era una volta”, “Il était une fois”, via-se logo que isso existia nesse “Once upon a midnight dreary”, mas não na versão do Milton Amado:

– Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria…

E lá vem mais distorções: suprime parte do primeiro verso de Poe, em que ele fala numa reflexão à meia-noite, meia-noite tornada, em português “erma e sombria”, pra jogar com “refletia”, quando não é a ela que o poeta se refere, mas a si mesmo:

– … while I pondered, weak and weary.

Ah, e a tradução de Jorge Wanderley!:

– Numa meia-noite erma, bem cansado e de alma enferma…

“Alma enferma” por causa de “erma”! E ele deixa sem tradução o while I pondered, “enquanto eu ponderava”, ou “meditava”!

E o Gondin da Fonseca?

– Certa vez quando, à meia-noite, eu lia, débil, extenuado…

Alexei Bueno:

– Numa meia-noite cava, quando, exausto, eu meditava…

Até que enfim o sujeito meditava – muito bem! – mas com isso a noite passava, forçosamente, a ser “cava”. Mas, vá lá: “cava”. Pior fizera o Machado :

– Em certo dia, à hora, à hora da meia-noite que apavora, eu, caindo de sono e exausto de fadiga…

Terrível ver que Machado ia falar da noite e começava com “ Em certo dia!” Ao que se seguia outra aberração: “exausto de fadiga”!

Bem, o que me importa é que Augusto dissera “Como um fantasma que se refugia na solidão da natureza morta, por trás dos ermos túmulos, um dia eu fui refugiar-me à tua porta!”, e Poe, no final de sua primeira estrofe, parecia reagir a isso, como que DE DENTRO da casa do Augusto:

– ´Tis some visitor, I muttered, tapping at my chamber door.

– É algum visitante – murmurei – batendo na porta de meu quarto.

Augusto:

– Fazia frio e o frio que fazia não era esse que a carne nos conforta… Cortava assim como em carniçaria o aço das facas incisivas corta!

Poe confirma o frio:

– Ah, distinctly I remember, it was in the bleak December! Ah! claramente eu o relembro! – Milton Amado traduz – Era no gélido dezembro e o fogo agônico animava o chão de sombras fantasmais.

Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora – essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora e nome, aqui, já não tem mais.

Dos Anjos retruca:

– Mas tu não vieste ver minha Desgraça! E eu saí, como quem tudo repele,
velho caixão a carregar destroços, levando apenas, na tumbal carcaça,
o pergaminho singular da pele e o chocalho fatídico dos ossos!

Ele realmente fala como se… em lugar do corvo de Poe, viesse a própria Lenora! E Poe parece dar por isso – oitenta, noventa anos antes -, ao abrir a porta:

– Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim: “Perdoai, senhora, ou meu senhor (Sir, said I, or madam) se há muito aí fora me esperais; Mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido, Que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta, Assim de leve, em hora morta.”

– Here I opened wide the door. Escancarei, então, a porta.

E o que vê?

Escuridão e nada mais.

– Darkness there, and nothing more.

Com a palavra, Chico Viana, mestre em Augusto.

 

Obs.: A tela em destaque acima é do artista plástico paraibano Flávio Tavares.

W. J. Solha: romancista, poeta e ensaísta paulista radicado na Paraíba, é também dramaturgo, ator, artista plástico e publicitário, com vários livros publicados e premiados, transitando em várias frentes de nossa cultura; um artista "multimídia" por excelência.

E-mail: waldemarsolha@gmail.com