Quando – em 97 – chegou a vez de pintar (no retângulo de vinte e tantos metros quadrados que está no auditório da reitoria da UFPB) a tela que faria referência à peça de Shakespeare “As You Like It” (que uns vertem para “Como quiserdes”, outros para “Como Gostais”), pensei imediatamente na figura de Ariano Suassuna no papel do personagem Touchstone, o grande “professional clown” do Bardo. Sapequei um chapelão vermelho e uma gola sanfonada no homem de Taperoá – tudo bem século XVII – e lá está a cara marota do nosso grande escritor “eternizada” ao lado de Júlio César, Hamlet, Julieta, Cleópatra, Ricardo III, etc, etc.

Não foi, no entanto, apenas a identidade histriônica Ariano/Touchstone que me fez juntá-los numa só figura. O que me pegou, no texto shakespeariano, também, foi esse nome – “Touchstone”, “Pedra de Toque” – que era o jaspe, quartzo ou basalto utilizado antigamente para riscar uma liga metálica, ouro ou prata, a fim de avaliar seu grau de pureza. Isso porque Ariano tornou-se pedra de toque no que se refere à pureza de nossa nordestinidade. O homem dizia que não trocava o seu oxente pelo OK de ninguém e, na verdade, dificilmente a Paraíba, o Nordeste, o Brasil e América Latina poderiam ter produzido alguém mais autêntico, mais radical na defesa de uma arte ligada às nossas raízes, ao nosso Eu, seja na literatura e no teatro, como no cinema, na música, na pintura, escultura, na poesia, na dança. Tudo, entretanto, de um modo tão inteligente quanto “clownesco”.

O foco da graça ariana estava no aproveitamento do equívoco, segundo ele, do lado Science de todo Chico de que o país está cheio, num jogo de cintura tão magistral, que fez com que ele mesmo contornasse o perigo e, com o peso de seu teatro, de seus romances, de seus ensaios, de seu Movimento Armorial, de sua história-de-vida, de suas aulas-espetáculos, de sua intensa agitação cultural, tivesse um final de vida raramente tão glorioso, apoteótico para um artista, com direito a samba-enredo no Rio e a ver A Pedra do Reino adaptada para o teatro pelo Antunes, e para a televisão pelo Luis Fernando Carvalho.

Ariano era o riso geral ao seu redor. É o que foi feito a partir dele, como o belo livro de fotografia – Do Reino Encantado – do Gustavo Moura, é o ABC de Ariano Suassuna – de Bráulio Tavares, é a ópera Dulcineia e Trancoso (a primeira armorial) – música de Eli-Eri Moura sobre libreto meu, é a peça Ariano, escrita pelo Astier Basílio, é O Auto do Reino do Sol, de Bráulio e Chico César, é a oportunidade rara, que tive, de ver o material – ainda quase bruto -, de O Senhor do Castelo, documentário do Marcus Vilar, e presenciar o escritor chorando ao se lembrar do pai, assassinado quando ele tinha três anos, cena que Marcus, dominado por forte impulso ético, eliminou depois.

Ante Ariano me curvo no que tiro meu próprio chapéu enorme, de mosqueteiro, arrastando minhas maiores plumas no chão.

W. J. Solha: romancista, poeta e ensaísta paulista radicado na Paraíba, é também dramaturgo, ator, artista plástico e publicitário, com vários livros publicados e premiados, transitando em várias frentes de nossa cultura; um artista "multimídia" por excelência.

E-mail: waldemarsolha@gmail.com