Milhões de velhos poetas como eu, comovem-se cada vez que se lembram de que Rimbaud, com 21 anos, depois de escrever “Uma Estação – ou Temporada – no Inferno” e “Iluminações” – duas obras-primas – jogou tudo pra cima e se mandou, como se esses dois livros o tivessem liberado da misteriosa cláusula do contrato que mantemos com a vida, que nos obriga – sempre – a fazer valer a Evolução.
Jovem muito menos brilhante, Shakespeare chegou a Londres precisamente com esses 21, sem nada na bagagem, pelo menos de que eu tenha conhecimento. Estreou seu primeiro espetáculo aos 26, e somente aos 48 largou tudo, mandando-se “de volta pro seu aconchego”, a pequena Stratford-upon-Avon. Ali morreu quatro anos mais tarde, dez depois de conceber o “Rei Lear”, quinze após criar o “Hamlet”.
Realizado? Não há como saber.
Thomas Mann, ao sobreviver oito anos a seu “Doutor Fausto”, disse: “Eu deveria ter morrido em seguida”. Desprezava, evidentemente, seus derradeiros romances, realmente muito menores do que o grandioso “A Montanha Mágica”, o colossal “Os Buddenbrooks” e o belo “Morte em Veneza”.
Fui oito vezes ver o “Las Meninas” de Velásquez, em 1994, “obra príncipe del Museo Del Prado y de la pintura española, y una de las creaciones fundamentales del arte universal”. Por causa da culminação pictórica alcançada com essa tela, com “la captación del espacio en términos puramente luminosos”, o rei Filipe IV , três anos depois de vê-la sendo realizada, nomeou Velásquez cavaleiro da Ordem de Santiago, um triunfo para o pintor e para a sua classe, pois ocorreu à revelia da nobreza, que considerava pintura “una artesenía” indigna de um “caballero”. O que fazer, mais, nos quatro anos depois do quadro? Trabalhos inferiores, como os últimos de Thomas Mann, ou parar de vez, como Shakespeare e Rimbaud?
Hemingway não resistiu ao fato de não conseguir, mais, construir grandes narrativas como “Adeus às Armas”, “O Velho e o Mar” e “Por Quem os Sinos Dobram”, matando-se com a própria espingarda, num gesto típico dos tempos de suas caçadas na África, que tinham dado origem a romances menores como “Do Outro Lado do Rio, Entre as Árvores” e “As Neves do Kilimandjaro”.
Os dramas são vários, quando se trata de arte e morte. Van Gogh dá um tiro no peito pelo fato de, aos 37 anos, além de rejeitado como pastor de sua igreja e como ser humano, jamais ter vendido quadro algum! Morre justamente quando acaba de produzir – sem saber disso – seu canto do cisne, o “Trigal com Corvos”, feito Colombo, que se foi desta para melhor sem nunca ter atinado que descobrira a América! Ao fazer o quadro que ilustra este texto, usei uma foto de Ezra Pound, grande poeta americano que, na Itália, apoiou abertamente o fascismo e se deu mal com a chegada dos Aliados. A expressão registrada pelo fotógrafo Richard Avedon ocorreu quando ele foi trancafiado numa jaula de gorila.
E Pollock? Há um bom filme com seu nome, dirigido e interpretado por Ed Harris. Nele, vemos o pintor alcoólatra á beira da desintegração escapar da obscuridade porque – ao contrário de Van Gogh – encontra alguém que o ame e o suporte – a também pintora Lee Krasner. Graças a ela, Pollock passa quase três anos sóbrio, no final dos anos 40, e dessa fase datam suas melhores obras. Em 1951, no entanto, volta a beber e entra na etapa final da autodestruição. Penso que sua angústia advém do fato de que ele explorara um filão – o do action painting – tão marcante, tão forte e original quanto o pós-expressionismo de Van Gogh, mas igualmente estanque, não permitindo o recurso mais utilizado por artistas de todos os tempos e lugares para evitar o esgotamento, que é o da mudança de fases, como ocorreu nos casos famosos de Stravinsky e Picasso.
Johann Sebastian Bach trabalha tranquilo, aos 56 anos, indiferente às críticas, compondo mais uma de suas famosas fugas, quando, ao terminar de fazer sua assinatura – as notas si-bemol, lá, dó e si-natural, que os alemães de sua época designavam pelas letras b, a, c, h – morre.
Guimarães Rosa está feliz da vida, em 1967, pela publicação de “Tutameia”. Constrangido, no entanto, recusa-se insistentemente a entrar na Academia Brasileira de Letras, pois – diz – morrerá em seguida, o que de fato acontece.
Mozart é detido pela Indesejada justamente no clímax da genialidade, aos 35 anos, quando faz o Réquiem, talvez sua mais alta criação, a K 626. Ao contrário do exíguo Rimbaud de duas obras-primas, eis aí sua sexcentésima vigésima sexta composição a caminho. Pense na inveja dos limitados criadores septuagenários como eu, ao saber disso!
A morte de Mozart, por sua vez, me leva à cena antológica do filme “Amadeus”, de Milos Forman, 1984, em que Wolfgang – nos seus minutos finais – dita o Confutatis, do Réquiem, ao aturdido Salieri, fazendo-me reviver momento parecido, de certo modo, quando escrevi os versos para Eli-Eri Moura compor seu majestoso “Réquiem Constestado”, que pouca gente conhece na Paraíba, mas cujo CD o crítico Carlos Eduardo Amaral coloca entre os dez melhores de música clássica nacional dos últimos anos. Em nosso Dies Irae – Dia da Ira – , enquanto “o Sol dissolve e a Terra esfria”, escrevo:
“Quanto terror
No futuro,
Quando estiver
Tudo escuro
E Deus chegar,
Ódio puro!”
– Acredita nisso? – Mozart pergunta.
E Salieri:
– Sim.
Eu, não. Mas me deslumbra o espetáculo surrealista do Juízo Final de Miguelângelo na Sistina, com um Jesus – Rex Tremendae Majestatis – fazendo um gesto de regente, no que um vigoroso grupo de anjos spargens sonum com suas trombetas, despertando os mortos. O Réquiem de Mozart, incrivelmente, supera essa façanha criadora.
Invejo a glória de nosso grande Ariano Suassuna, criando – e bem – até o fim.
W. J. Solha: romancista, poeta e ensaísta paulista radicado na Paraíba, é também dramaturgo, ator, artista plástico e publicitário, com vários livros publicados e premiados, transitando em várias frentes de nossa cultura; um artista "multimídia" por excelência.
E-mail: waldemarsolha@gmail.com