Certa vez, em certa tarde, fui levado ao ateliê de Gilvan Samico. Enquanto meu amigo Garibaldi Otávio conversava com o artista, eu me extasiava diante de suas gravuras. Os trabalhos do Samico expostos nas paredes do seu ateliê em Olinda descortinam um espetáculo de comunhão.
A sensação que se apossou de mim foi inteiramente literária. Me veio à cabeça uma frase do poeta Antonio Machado que diz assim: “conta-se uma viva história, contando sua melodia”. Sugestionado por essa lembrança fui vendo cada gravura e me perguntando qual a melodia que ela cantaria. Porém não fui longe nessa ideia porque as gravuras do mestre Samico em seu conjunto tocam uma única e sublime melodia.
A melodia da opulência de um Brasil caliente e faceiro onde reinam mitos e riquezas sem fim. A onça pintada, o bote navegando no açude, o sertanejo, o índio, a cobra coral, os pássaros de asas translúcidas, as estrelas, os dias e as noites formam um majestoso moinho a girar um país harmônico e alegre, apesar do preto e branco serem preponderantes na obra do gravurista pernambucano.
Em transe não sei por que me ocorreu o nome de uma pessoa que nasceu em outro lugar e que construiu em sua arte um planeta colorido e vivo tal qual Gilvan Samico. Seu nome é Frida Kahlo.
Na pintura dessa mulher revolucionária pulsam um país abundante e pictórico emoldurando o amor que a artista dedicava à vida. Ouvi tocar nas telas de Frida e nas gravuras de Gilvan, a mesma alma, a mesma nobreza, a mesma melodia. Isso mesmo, a socialista Frida Kalo e o liberal Samico são movidos por severa obstinação: acreditam que o homem tem jeito e que o futuro vale à pena.
A “mexicanidade” da primeira e a “nordestinidade” do segundo são testemunhos vivos do amor que ambos sentiam pelo povo de sua terra. Pouco importa se trilharam rumos diferentes. Ele por acreditar na perfeição de Deus e ela por acreditar que do sofrimento do homem surgirá a igualdade, a liberdade e a revolução.
A pintora Frida Kahlo opera com maestria a linguagem direta dos murais mexicanos. Suas telas expressam persistência e dor em meio a uma coreografia de luta. O gravador Samico absorveu a estética da gravura popular usada fartamente nas capas dos folhetos de literatura de cordel e a partir criou um universo próprio.
Samico festeja o casamento do maravilhoso com o sobrenatural. Frida enaltece a grandeza que existe na luta pela superação da dor física, problema que lhe acompanhou praticamente toda a vida.
A beleza pulsa intensa permanecendo fresca e viva na arte de cada um. Ela e ele me ensinaram que as tragédias humanas não são para sempre. Para sempre são o sonho e a poesia por representar a incessante busca por conhecimento, liberdade e esperança.
Marcius Cortez: publicitário, crítico literário e escritor potiguar radicado em São Paulo, foi redator de várias agências, entre as quais a DPZ, a JW Thompson e a Norton, tendo publicado vários livros, sendo o mais recente o impressionante Stanley Kubrick: o monstro de coração mole.
E-mail: marciuscortez@hotmail.com