Autodidata é o personagem de A Náusea, de Sartre, que está lendo – em ordem alfabética – todos os livros da Biblioteca de Bouville – comuna da Normandia hoje com 970 habitantes, revelando, por isso, respeitável cultura … que vai até a letra I. A carapuça gozadora me serviu, quando li o romance, ainda em Pombal – no alto sertão paraibano, pois já fizera coisa parecida ao devorar algumas enciclopédias. Isso nos anos 60, quando Bob Dylan repetia que “the answer is blowin’ in the wind”, enquanto os cientistas se esfalfavam no aperfeiçoamento dos primeiros computadores pessoais e davam os passos iniciais na criação da Internet. É incrível como a sigla www é recente: 1996: ano em que nasceu meu neto Israel! Aí surgiu isso que se conhece como buscador – ou ferramenta, motor, máquina ou mecanismo de busca – novidade revolucionária na informação, que passou a ser diariamente atualizada e colocada à disposição de todos, no mundo inteiro, graças a centenas de empresas, como a mais universalmente requisitada Google.
Assim, perto dos oitenta anos de idade, vejo-me mais empolgado com a extraordinária riqueza de dados que me chegam por esse meio, do que quando os recebia, nessa grande era dos descobrimentos – que é a infância – , por revistas como Eu Sei Tudo (com seções tipo “A Sciência ao Alcance de Todos”), ou mil vezes mais entusiasmado do que quando, nos anos 50, devorava os dezoito volumes do “Tesouro da Juventude”, da W. M. Jackson, Inc., fascinado, principalmente, pelo “Livro dos Porquês”, que havia em todos os tomos, onde me deparava com questões como De que é feito o Sol? Por que nos inquietamos? Sabem as galinhas que hão de sair pintos dos seus ovos? Como é que as moscas podem andar pelo teto? Por que não estamos nunca satisfeitos?
Raramente, hoje, pesquiso em livros ao meu redor – a maioria, por sinal, já doada. Digito, por exemplo, “olhos de ressaca”, que sei serem os de Capitu, no “Dom Casmurro”, mas não me lembro de que parte dele, e vejo – na íntegra -, na tela, o capítulo CXXIII do romance, com o que ganho um tempo enorme na pesquisa. Sem falar da gigantesca quantidade de obras que não possuo e que ali estão à minha disposição, como a Bíblia em dezenas de idiomas, o que é de extrema utilidade quando tento ir à origem das coisas. O chapéu de Indiana Jones veio, mesmo, da fábrica Cury, de Campinas? Carmem Miranda era portuguesa, mas de onde? De Marco de Canaveses; Carlos Gardel era um francês, mas de qual lugar? Toulouse. É como se, de repente, pudéssemos – instantaneamente – saber qualquer coisa. O que Benoit Maldelbrot tem a ver com os fractais? O que significa “pentimento”? Em que consiste a carnavalização da literatura? Como é que se escreve gnothi seauton – conhece-te a ti mesmo – em caracteres gregos? Ô, γνῶθι σεαυτόν! Bucéfalo, Incitatus, Trigger e Silver foram cavalos de quem? Qual a tese filosófica defendida pelo pintor Pedro Américo na Bélgica? Que cidade fica na longitude oeste de 34º47’30”, latitude sul de 7º09’28? Como é o verbo adequar na primeira, segunda, terceira e sexta pessoas do presente do indicativo? Hino Nacional em latim?
Audierunt Ypirangæ ripæ placida
Heroicæ gentis validum clamorem,
Solisque libertatis flammae fulgidæ…
Se o Google me levou à editora Palimage, que lançaria meu livro Trigal com Corvos em Portugal; se me apresenta os poemas de William Carlos William e de Expedito Ferraz Jr, as esculturas de Camille Claudel e Miguel dos Santos, as clássicas fotografias de Ansel Adams no interior da América, as de João Lobo em Portugal – onde vive hoje, e se, além de me passar informações sobre todos os concertos e filmes possíveis e imagináveis, leva-me, ainda, aos extremos do universo e à intimidade dos átomos, comove-me, no entanto, por não se ater a luminares da filosofia, da política, da ciência ou das artes. Assim, vi, no Google – sem que eu tenha o pedigree de um Ariano Suassuna, nascido no Palácio da Redenção -, que Fortunato e Ermelinda – meus pais – casaram-se no dia 08 de janeiro de 1930; que meu avô paterno, Joaquim Solha, nasceu em Lisboa, a 06 de fevereiro de 1875, filho – eu também não sabia disso – do casal Constantino e Rita – nomes que seriam, depois, de dois de seus filhos, meus tios, e que meu primeiro antepassado em Portugal veio da Galícia, como embaixador pra região de Guimarães e ali se tornou fabricante de órgãos para as grandes igrejas, casou-se com uma mulher rica, e mudou o sobrenome de Solla (que se pronunciava com lh em sua terra), e eis Dom Francisco António Solha.
Mais: se tenho de ser humilde ante o criador de A Pedra do Reino, o Google confirma-me que não é pela ausência de armas e varões assinalados entre os Solhas, mas porque o buscador tem, a meu respeito, a insignificância de 12.000 resultados, contra 1.240.000 de Ariano Suassuna, o que até que não é muito, frente aos 3.190.000 do pintor Flávio Tavares, dos 9.770.000 de Vladimir Carvalho,e 33 milhões – redondos – de Sérgio de Castro Pinto.
Há exatos dez anos, anotei que Walter Galvão citara, no Correio da Paraíba, uma reportagem que lera no novaiorquino “The Wall Street Journal” do dia anterior, enquanto Crispim mencionava outra, do londrino “Daily Telegraph”, ambas, evidentemente, capturadas pela Internet. Aí vi um sólido ensaio do Sílvio Osias sobre os Beatles, em O Norte, li a enciclopédica coluna diária do Bráulio Tavares no Jornal da Paraíba, e pensei: ôh-ôh: novos tempos na nossa imprensa.
Na verdade é assombroso o que está acontecendo. Pense no João Batista de Brito escrevendo uma crítica ao filme “Era uma vez em Hollywood”, do Tarantino, sem a confirmação do título original em inglês. Vai ao seu site de busca e, imediatamente, transfere por inteiro, sem precisar digitar, o nome (com tradução literal no Brasil e Portugal, “Once Upon a Time in Hollywood”), para seu texto. Já o Geraldo Varela tem um branco – igual ao que me deu agora – sobre quem foi o goleiro que suportou o milésimo gol de Pelé, faz a consulta na net – como eu faço – e revê mentalmente, num átimo, o argentino Andrada, golkeeper do Vasco, esmurrar o chão por não ter agarrado a bola por tão pouco.
Estamos vivendo, elevada à enésima potência, a revolução que foi a criação da imprensa. Inclusive aqui, nesta não mais tão remota Para´hywa, até há pouco urbi, agora orbe. Nossa aldeia, finalmente, globalizou-se. E fico pensando no que será a informação daqui a cem, a mil anos (o velho coronavírus devidamente esquecido). Fala-se, já, num implante no cérebro, que nos deixaria, de imediato, donos de todo o conhecimento disponível, acessível como se fosse nossa própria memória. Sempre me pareceu que houve uma troca nos nomes atribuídos ao Consciente e Inconsciente, um ciente de tão pouco, o outro o verdadeiro Eu Sei Tudo que nos guia, as biografias e a História, mas creio que caminhamos, num ritmo crescente, para a fusão dos dois, o que me faz lembrar o Gênesis quando diz: “Sereis como deuses”, e Teilhard de Chardin, quando já põe uma data para algo parecido no que chama de Ponto Ômega.
W. J. Solha: romancista, poeta e ensaísta paulista radicado na Paraíba, é também dramaturgo, ator, artista plástico e publicitário, com vários livros publicados e premiados, transitando em várias frentes de nossa cultura; um artista "multimídia" por excelência.
E-mail: waldemarsolha@gmail.com