Daqui do alto, sentado em minha cadeira de rodas, contemplo o mar de edifícios, de variadas formas, cores e alturas, com predominância do branco, que se espraia em todas as direções. Os que estão próximos da zona de sombras, e que têm ainda alguma memória, sabem que por aqui existiram casas. Os mais novos leem sobre elas nas páginas eletrônicas do novo romance, mas são histórias muito diferentes da realidade de outrora.

Ninguém nos ouve, nem nos veem. Talvez já estejamos nas sombras, e não nos demos conta. Os adolescentes, intrépidos por natureza, vez ou outra burlam a segurança eletrogenética, ninguém sabe como, esgueiram-se sob a cerca, sem serem detectados, e correm até a zona dos fracassados, ou dos não atualizados, não sei bem como os dali são chamados. Sobrevivem a duras penas, desprezados pelo grande sistema social e tecnológico integrado.

Para além das cercas – na verdade, sensores que identificam e imobilizam quem tenta ultrapassar as fronteiras do grande sistema sem autorização expressa do comando da federação de condomínios -, dizem os adolescentes que retornam, existem casas, ainda, e até árvores. As pessoas do lado de lá têm um jeito de se expressar muito diferente do nosso. E gostam de fazer perguntas, para as quais, na maioria das vezes, as do lado de cá não têm respostas.

Cada condomínio é uma associação particular, com comando e regulamento próprios, e todos os condôminos conversam apenas por meio de redes sociais, com regras estabelecidas pela federação. Não há assuntos privados. As famílias são vigiadas por câmeras nos apartamentos, e quando se desfazem no todo, ao cruzarem a soleira da porta, continuam sendo observadas nos corredores, nas áreas comuns, nas salas sociais, nas ruas e nas lojas de departamentos.

Esta semana alguém foi preso por plantar uma árvore na área externa de um apartamento térreo. Explicou que a espécie cresceria milimetricamente dentro do espaço que lhe cabia, sem conceder sombra, folhas ou frutos a ninguém, mas não adiantou. Tudo o que diz respeito à relação entre os seres humanos e a natureza é de responsabilidade exclusiva da federação. As únicas exceções são as pequenas hortas – mais para distração – e jarros com espécies florais.

Na verdade, verde é uma palavra associada à cor, apenas. Ninguém tem tempo para as plantas. Tudo o que querem ver pode ser criado virtualmente em pequenas ou grandes telas. Vez ou outra alguém se aventura por mares e florestas plasmáticos, mas estes são considerados saudosistas ultrapassados. A maioria gosta de jogos, de conversas formais, e de trabalhar. Aliás, este é o verbo que melhor define a ocupação geral, neste meu fim de tempo.

Logo, logo virão me buscar. Não gostam muito de nós. Dizem que os condomínios seriam mais funcionais sem a infraestrutura de acesso para idosos, e que nossas conversas são quase um murmúrio, difícil de serem captadas pelas câmeras. Para evitar a proliferação de ideias contrárias ao modo associativo em vigor, proibiram os nossos encontros mensais, por quadras de condomínios, e a grande reunião anual dos aproximados da zona de sombras.

A tecnologia de comunicação e informação é restritiva para nós. Livros e discos foram proibidos, e a televisão também não existe mais. Restam, para nós, algumas horas, entre as telas de captação de energia solar, no alto dos edifícios, momentos que aproveitamos para pensar. Cá entre nós, estamos desenvolvendo uma língua de sinais. Breve teremos o que contar, mas todo cuidado é pouco, e a zona de sombras está aí, para nos abocanhar.

William Costa: jornalista de carreira e escritor paraibano, editor do suplemento cultural Correio das Artes, cronista do jornal A União, tem vasta experiência em veículos de imprensa e é autor do livro de crônicas e contos Para tocar tuas mãos - Chronesis.

E-mail: wpcosta.2007@gmail.com