Interessante é que Ridley Scott sempre foi um diretor do tipo “ame ou deixe-o”. É possível gostar, de um modo avassalador, de alguns de seus filmes. De outros, no entanto, detesta-se de uma maneira quase doentia. Por sorte, um dos maiores filmes da história do cinema (ouso dizer), Blade Runner, o caçador de androides, entra para a lista dos filmes geniais do diretor inglês.

Tudo ocorreu, porém, de forma bastante tardia: orçada em 28 milhões de dólares, a película não foi bem acolhida em seu lançamento original, tornando-se um retumbante fracasso financeiro.  Este thriller, futurista e retrô ao mesmo tempo, se desenrola em uma Los Angeles noir (mistura de ficção científica do século XXI com filmes de detetive da década de 40), com ruas abarrotadas de gente de toda a espécie e de todos os lugares do mundo (desde cyberpunks a monges hare krishnas; muçulmanos e asiáticos a outras etnias) e chuva ácida contínua, no ano de 2019.

Adaptado do romance de Philip K. Dick Do androids dream of electric sheep?, de 1968, por Hampton Fancher e David Peoples, a trama levou catorze anos para chegar ao cinema, em 1982. Somente após o lançamento da versão do diretor, uma década depois (1992), a concepção visual espantosa e estilizada do futuro finalmente foi reconhecida como uma obra-prima do gênero ficção-científica, aclamada pelo público e pela crítica. Nem mesmo assim, Ridley se deu por satisfeito: ainda lançaria a versão Director’s cut em 2007.

Era o filme que tinha tudo para dar errado e, de fato, no ano de seu lançamento, deu: Harrison Ford não se entendia com sua parceira de cena Sean Young (estonteante em todas as cenas) e nem com Ridley. A equipe de filmagem também se irritou por demais com o penoso cronograma de produção e a rigidez do diretor. Por uma ironia do destino, este foi o filme em que todas as tensões criadas no set de filmagem acabaram por gerar o parto de uma obra-prima.

Espantosamente, a película original já era soberba e, após a remontagem do diretor, tornou-se fantástica. A música do grego Vangelis cai como uma luva em todas as cenas. A cena de amor em que Ford (o caçador de replicantes Deckard) “ensina” Young (a replicante Rachel) a pedir para que ele a beijasse é uma das cenas inesquecíveis do cinema. Rutger Hauer, em atuação monumental, em vários momentos, rouba as cenas do filme, no papel do replicante Roy Batty. Todos os outros atores têm atuações acima da média – até Daryl Hannah, atriz de limitados recursos cênicos, e o próprio Ford, canastrão em outros momentos de sua longa carreira.

Os temas abordados por este triunfo visual do cinema é extenso e aberto a muitas discussões e polêmicas: a distopia tecnológica ácida (um futuro não muito distante e opressor) em que Deckard (também se discute se ele mesmo seria um replicante) é enviado para “aposentar”, ou seja, executar os androides que retornaram à Terra em busca do seu criador – Tyrrel (personagem de Joe Turkel) -, envolve discussões filosóficas, existenciais, religiosas e culturais, permeadas por um notável senso de ação e suspense, no qual o porvir da humanidade é mostrado como um processo em que a “globalização” de nosso planeta é algo negativo, amoral e sombrio. Cult absoluto. 

Thiago Andrade Macedo: escritor infiltrado no serviço público federal, advogado não militante, autor do romance policial, psicológico e filosófico O Silêncio das Sombras, também atuou como articulista do jornal A União; filho de pernambucanos nascido nas Minas Gerais, atualmente é um ex-nômade radicado em João Pessoa, Paraíba.

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