Roman Polanski (1933- ), pode-se dizer, é um dos gênios do cinema, essa arte tão complicada e escorregadia, que produz mais porcarias do que obras-primas. Sua vida nunca foi fácil. Sua mãe morreu no campo de concentração de Auschwitz. Ele e seu pai, a duras penas, conseguiram escapar da perseguição nazista. Três anos após as filmagens de Chinatown, foi preso, acusado de abuso de uma menor de treze anos. Após o pagamento de uma fiança, sumiu do mapa dos Estados Unidos, para nunca mais voltar. Polanski é, até hoje, foragido da justiça norte-americana. Ufa, quantas reviravoltas em uma só vida!

Às vezes, me ponho a imaginar se Jake Gittes, o personagem central de Chinatown, não seria uma síntese das agruras vividas por Polanski até então e um prenúncio dos infortúnios que assombrariam sua vida depois.

O filme, lançado pela Paramount em 1974, é o ápice de sua carreira como realizador cinematográfico. O baixinho de dupla nacionalidade (filho de judeus polacos nascido em Paris e criado na Polônia) rodou muita coisa boa depois desse filme (entre suas joias está O Pianista), como também muitas bobagens. Até hoje, entretanto, nada supera a sua vertiginosa incursão no universo noir em 1974.

No ano cujo Oscar foi dominado por O Poderoso Chefão 2, Chinatown só levou uma estatueta (melhor roteiro, por Robert Towne, que escreveu a trama especialmente para Jack Nicholson, levemente baseada em fatos reais – o escândalo do vale do Rio Owens, de 1908), apesar de ter sido indicado em onze categorias.

Basicamente, a estória produzida pelo lendário Robert Evans é uma intrincada trama policial envolvendo corrupção, trapaça, especulação imobiliária, assassinatos e mistério. Tudo começa quando o detetive Jake Gittes (Nicholson) é contratado para espionar Hollis Mulwray, o engenheiro-chefe do departamento de água e energia da Los Angeles dos anos 30, envolvendo-se em uma rede de intrigas e traições, cujo desfecho, com grande parte do elenco em cena, como normalmente acontece nas óperas, ocorre em uma certa noite, em um dos bairros mais ambíguos da cidade: Chinatown.

Eis um thriller nostálgico e denso, conseguindo ser tão ou mais interessante que os melhores títulos da literatura noir, o que já é algo inusitado, pois muitos filmes tendem a ser inferiores aos títulos de livros que “homenageiam”. É uma soberba estória de detetive que não deixa nada a dever às melhores safras de tramas de Chandler e Hammett. Aliás, o Jake Gittes brilhantemente interpretado por Jack Nicholson é uma personalidade mais complexa do que o Philip Marlowe de Chandler ou mesmo o Sam Spade de Hammett, cuja pele Humphrey Bogart defendeu de maneira certeira em O Falcão Maltês, título que os nossos magníficos tradutores fizeram o favor de “transformar” no “alternativo” Relíquia Macabra. Entretanto, cá para nós, ser mais profundo que Marlowe ou Sam Spade, heróis/anti-herois da subliteratura/literatura noir, não é algo tão difícil assim, convenhamos.

Embalada pela trilha sonora inesquecível de Jerry Goldsmith (a música de abertura nos toma de assalto! – como no vídeo abaixo), a película é um desfile de personagens excêntricos, cínicos, frios e canalhas, contando com uma das maiores atuações de Nicholson e Faye Dunaway jamais vistas. É um dos raros momentos na história da sétima arte em que tudo parece se encaixar. A fotografia é esplêndida, bem como a marcação de tempo das cenas. Tudo está perfeitamente bem distribuído. Nada parece estar fora do lugar. Com seus planos e durações milimetricamente diagramados, o filme parece ser a própria vida – o objetivo final da dita sétima arte.

Polanski subverteu magistralmente uma das principais regras do cinema hollywoodiano: o personagem de Nicholson usa uma atadura sobre o nariz durante quase todo o filme. Já imaginou isso? Sarcástico, irônico, cáustico? O mais incrível foi que ele mesmo, Polanski, faz uma ponta no filme, esfaqueando o detetive Gittes no nariz (!) – impossível uma assinatura mais insólita, o que, mais uma vez, atesta a sua genialidade.

Em que pese a trama ser complicada, a qualidade do roteiro labiríntico nos prende de uma maneira sufocante e nos põe em contato com o mundo solitário de Gittes – um homem bom porém sombrio, às vezes agressivo ou ameaçador, contando uma ou outra piada suja aqui e acolá. Percebemos que ele está cansado de tantas mentiras de todos que o rodeiam – eis o ônus de viver bisbilhotando os segredos dos outros enquanto esconde os seus. Polanski realizou as filmagens sob a perspectiva do protagonista, conferindo uma atmosfera similar à das obras de Chandler e Hammett, escritas em primeira pessoa. A câmera parece ter uma atração magnética pelo investigador e nunca o abandona: é através de seu olhar que tentamos captar a realidade. Isso faz de Chinatown a Janela Indiscreta de Polanski, o qual, no fundo e no mais das vezes, simplesmente nos quer dizer, com seu olhar agudo e cortante, que Gittes, afinal de contas, somos todos nós.

Embora Jack Nicholson, ao longo da carreira, tenha passado um bom tempo repetindo-se nos mesmos papéis (como Robert De Niro), ele é um dos grandes atores de cinema de sua geração e de todos os tempos. Com sua interpretação naturalista de Jake Gittes, ele nos imerge em um mundo de cinismo e escuridão, onde mal se pode respirar, como ele nos indica em boa parte do filme, com a atadura por sobre o nariz. Com extremo apuro técnico e domínio de seu ofício, Nicholson nos dá um Gittes assustadoramente humano, desafetado, espontâneo. Podemos sentir as agruras existenciais do personagem e o tom niilista da obra, ora de uma forma leve e cômica, ora em tom complexo e grave. Muitos anos depois, ele mesmo viria a estrelar e dirigir uma continuação deste filme, também escrita por Towne, mas inferior: A Chave do Enigma.

Na sinuosa trama de Chinatown, o vilão é ninguém mais ninguém menos que John Huston, ele mesmo, o realizador de O Falcão Maltês – outro xeque-mate de Polanski. O tom de pesadelo nos persegue, e Huston surge com uma capa espessa de falsas gentilezas e algumas insinuações, escondendo todo o mal que seu personagem guarda em suas entranhas. Sentimos sua presença em quase todo o filme, muito embora poucas sejam as suas cenas, o que só faz aumentar a crueldade e a repugnância que seu personagem sorrateiramente oculta.

Quando menos esperamos, a genialidade do olhar perturbador de Polanski (que já nos brindou com maravilhas como o O bebê de Rosemary, além da pequena obra-prima recente O Deus da Carnificina) surge novamente, ao modificar o final do roteiro de Robert Towne, dando um desfecho mais ambíguo e pessimista ao enredo – dizem que, por conta disso, Towne, no período das filmagens, brigou feio com o baixinho narigudo. Somente 25 anos depois do lançamento do filme, o roteirista voltou atrás e declarou que o cineasta estava certo quanto à escolha do final. A inventividade do roteiro realmente impressiona: os diálogos são cortantes, a oscilação da conduta dos personagens beira a perfeição.

Chinatown representou o tour de force de Polanski, bem como um retorno a Hollywood. Depois de uma carreira brilhante iniciada na Europa, no limiar da década de 1960 (época de filmes perturbadores como Repulsa ao Sexo, estrelado por Catherine Deneuve), ele veio para a Califórnia e teve um estrondoso sucesso (O bebê de Rosemary, de 1968). Em seguida, sua esposa Sharon Tate foi uma das vítimas da gangue do lunático Charles Manson. Polanski então retorna à Europa. Só voltaria aos EUA cinco anos depois, para as filmagens do pesadelo de Jake Gittes, no qual provavelmente tenha projetado seu próprio pesadelo. É bem factível que o desfecho pessimista da estória revele a sua desesperança, após os trágicos acontecimentos pelos quais havia passado.

Uma superprodução que não é careta ou histriônica, ou seja, uma exceção à regra: a odisseia de Gittes no submundo de tramoias na Los Angeles dos anos 30 definitivamente é um dos maiores, mais sofisticados e mais subversivos espetáculos cinematográficos de todos os tempos. Um filme sem concessões, que não poderia ser concebido nem rodado na mixórdia da Hollywood atual – repleta de gente chata e politicamente correta. Poucas vezes na história do cinema, o tema da ganância foi tratado de forma tão assustadora e obsessiva.

Boa parte das grandes obras de arte (da literatura, das artes plásticas, do cinema) intimidam, confundem, provocam o caos, a desordem. Assista a Chinatown e se deixe perturbar também. E muito cuidado com seu nariz, quando decidir bisbilhotar a vida dos outros…

Thiago Andrade Macedo: escritor infiltrado no serviço público federal, advogado não militante, autor do romance policial, psicológico e filosófico O Silêncio das Sombras, também atuou como articulista do jornal A União; filho de pernambucanos nascido nas Minas Gerais, atualmente é um ex-nômade radicado em João Pessoa, Paraíba.

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