Francis era uma mulher linda. Tinha quarenta anos, parecia ter trinta, graças aos tratamentos estéticos, proporcionados por seu saldo bancário indecente ou pelo saldo do marido, igualmente obsceno. Ela tinha feito tudo “certo”, ou seja, tinha preenchido as expectativas dos seus pais, dos seus amigos, do seu marido, da sociedade. Andou pela vida como quem dorme, do alto dos seus 1.78 de altura, com seu sorriso forçado que se alargava ainda mais quando queria agradar alguém, vestida impecavelmente, penteada impecavelmente, maquiada impecavelmente. Aquela mulher elegante, escondia as maneiras mais grosseiras possíveis. Engolia seco, cada vez em que pensava como poderia ter sido sua vida, e que anos atrás, tinha sonhado em morar em lugares selvagens, em ser bióloga, em viver perto dos animais, do mar encrespado, dos ventos que correm como bichos nas florestas. Mas como tudo isso soava como um fracassado despropósito aos olhos dos seus pais, que se negaram a pagar a faculdade que corresponderia a uma carreira naquela área, Francis desistiu.
Seguia sua vida, tentando respirar dentro de suas roupas elegantes, como uma mulher da era vitoriana tinha tentado absorver ar dentro de um espartilho, com dores até os ossos, com a respiração presa, com os desejos asfixiados pela compressão de um objeto feito para modelar um corpo considerado imperfeito. Lia revistas femininas, gostava de tudo o que se supõe ter relação com o feminino. Tinha suas dúvidas sobre o que significava aquela palavra, feminino, ser feminina, mas gostava de maquiagens, de estética, gastronomia, casamento, temas supostamente femininos. Será que gostava? Na verdade, seu gosto se inclinava ao cru, ao que pode se encontrar ainda em estado natural, ao agreste, ao silvestre, ao indomado, ao que enfurece, ao indisciplinado e incontrolável, nômade e bárbaro. Mas ela trancava essas qualidades excepcionais e preferia lambuzar o rosto para atenuar as primeiras rugas, preferia esconder os gemidos, os sons guturais, os palavrões, seu prazer e impulsos legítimos. Com o tempo, ela encontrou um escape para que o primitivo pudesse aflorar, como pássaro que percorre, a cada vez que deixa o ninho, distâncias maiores e mais ousadas.
Embaralhou os tecidos, as tesouras, as rendas, e pensou que o que queria mesmo, era colocar tudo para ferver em panela de pressão, que inchada até o limite, explodisse com toda aquela massa confusa, espalhando-se por todos os cantos de sua vida. Os resíduos sujariam o teto, não podia fazer aquilo! Pensou em uma segunda estratégia para golfar toda a sua impotência para fora: desembaralharia linhas, rendas, tecidos, e esfiaparia sua vida com as tesouras, e assim, ela poderia desaparecer junto com a tarde. Ideia idiota! Pensou em outra estratégia: tomaria sua vida nas mãos, apanharia aquele enxame fervoroso que tinha dentro de si e que zunia sempre, estropiaria aquela colmeia com sua insatisfação, mancharia os tecidos brancos de seda e de cetim com tesouradas largas e prenhes da mais pura violência. Ela queria desandar o branco dos vestidos de noiva, tingir todos aqueles vestidos com agulhadas e alfinetadas profundas, queria transformar aqueles tecidos lindos em trapos, que se estenderiam em filetes sujos pelo chão imundo, como se fossem respingos malfeitos. Se pudesse, congelaria os vestidos na moldura que era sua máquina de costura. De qualquer forma, aqueles vestidos meio-mortos já estavam congelados, enquanto ela os costurava na máquina que trabalhava debaixo de suas pedaladas. Considerava sua máquina de costura uma moldura, porque ela produzia modelos perfeitos, que se poderia emoldurar e pendurar em uma parede como animais empalhados. Às vezes, tocava em sua máquina de costura e tinha a sensação de que ela era tão fria como um frigorífico, olhava para as araras com os vestidos pendurados e só conseguia ver peças de carne congeladas, alinhadas umas depois das outras. Alfinetaria todas as noivas, agulharia seus buquês perfeitos e insossos, que inundavam as igrejas com serenidade, enquanto elas esperavam para dar os passos de sua caminhada até o altar. Encomendaria flores de plástico para encher as igrejas, antecipando assim, o insípido odor dos casamentos, que seguiriam por anos sem qualquer surpresa.
Ela não atenderia a próxima noiva, que deveria chegar em mais ou menos meia hora, porque esqueceria que era uma estilista especializada em vestidos de noiva exclusivos, ela esqueceria como usar as agulhas, não saberia mais como trotar os pés com balanços suaves ou apressados na máquina de costura. Aquele trote da máquina de costura, lembrava que o relógio corria também a marteladas. E por falar em martelar, quem sabe o melhor não seria acabar com todo o ateliê com golpes de martelo em estilo punk? Ela se lembrou que ouvia escondido a banda punk Sex Pistols quando era adolescente. Quem desconfiaria que a princesa era, na verdade, uma adoradora de pistolas? Quem sabe, só precisasse se acalmar, receber a próxima cliente com aquele discurso de sempre, mas entre seu crânio e garganta, navegava um tubarão faminto, que queria comer o sorriso da noiva que estaria na sua frente. E a noiva, que animal seria? A noiva seria um outro animal selvagem, que estaria ali parada no meio do ateliê, como um pinguim congelado, dizendo que queria se casar. Mas a imagem não combinava, pinguim congelado parecia mais com noivo, fraque, esse tipo de coisa.
Ela poderia alinhavar tudo, tesouras, vestidos de noiva, agulhas, alfinetes e sorrisos, enfiar tudo em um saco de lixo bem amarrado e jogar janela abaixo, ou tudo poderia desintegrar como se nunca tivesse existido. Por que tinha montado aquele ateliê rosado? Não tinha tempo de pensar naquilo, porque a noiva estava prestes a chegar. Não atenderia a porta! Desligaria a luz e ficaria sentada no escuro! Desligaria o celular!
Ela se lembrava de todas as revistas de noivas que tinha folheado, das fotografias de bolos, flores, vestidos com caudas e véus. Aquelas lembranças se moviam como camadas e mais camadas de branco, correndo através de páginas, que se desfaziam nas névoas de um passado que tinha começado há vinte anos. Passados vinte anos, agora ela folheava revistas, mas seus olhos não conseguiam se firmar, mesmo que estivesse usando óculos, as imagens escapavam em borrões desajustados, ela via imagens duplas, seus olhos desfocados não distinguiam linhas e pontos, que se juntavam embolados em um cesto feito de névoas. Depois de vinte anos cansando os olhos para acertar pontos, cansando pernas para pedalar rápido a máquina de costura, depois de anos acertando barras, pregando botões, ajustando aqui e mais para lá, seus olhos estavam esfolados, seus dedos tinham ficado enrijecidos e pareciam estar quebrados, dedos delicados que tinham sido picados mil vezes por agulhas, isso porque, apesar de ter uma equipe de trabalho, ela interferia em tudo, supervisionava ínfimos detalhes, era obsessiva e mesmo sendo a estilista famosa que era, fazia parte do trabalho com suas próprias mãos. Agora ela buscava vingança, ela queria picar, ao invés de ser picada, ela não queria mais ajustar vestidos, ela queria se tonar desajustada, ela não tolerava mais costurar, ela queria descosturar sua vida. Ela não suportava mais ser a estilista que frequentava eventos vips! Ela sonhava em pregar botões desemparelhados, em inventar barras tortas que arrastassem no chão e impedissem que as noivas chegassem ao altar. Você pode rir, mas era assim que Francis se sentia, se você pudesse a ver por dentro, encontraria uma caricatura, uma careta de horror, enojada de sua própria vida.
Tornar-se uma estilista de vestidos de noiva exclusivos foi inesperado, tinha feito sentido há vinte anos. O convite veio até ela por uma espécie de acaso, ela simplesmente aceitou o acaso e fez disso seu cotidiano. Não que ela não tivesse folheado revistas de noivas com sua irmã quando eram crianças, não que não tivesse brincado de casamento naquela maldita casinha de bonecas que ganhou no Natal de seus pais, mas nunca tinha planejado ser uma estilista de vestidos de noivas exclusivos pelo resto da vida, estava encurralada! O convite tinha vindo através de uma amiga que comandava um célebre ateliê, e como Francis era estilista, quem sabe não seria um começo de carreira? Com o tempo, montou seu negócio, que explodiu, e o sucesso auxiliou a implodir sua vida, porque não era aquilo que ela realmente queria, ela queria ser bióloga, morar no meio do mato, nunca usar maquiagem, ser companheira de bichos e de águas poderosas.
Denise Courtouké: atriz e escritora paulistana, estudiosa das linguagens do teatro, dança, literatura, dramaturgia do corpo e do ator, participando de vários festivais de teatro nacionais e internacionais; assinou as dramaturgias teatrais “Camille Claudel, Divino Impulso”, com apresentações no Sesc Vila Mariana, “A hora da estrela”, no Sesc Pompéia, e “Entrevistas sobre a decadência”; entre seus títulos figuram os romances “Olhos feitos de poeira de estrela e névoas”, “Ventre de vegetação e lama”, “Relatos de sangue e vácuo”, o livro de contos “Com as letras da tua voz”, o livro de poemas “Rubros”.
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