Enquanto pensava que a próxima noiva estaria para chegar, ela se lembrava do Otávio, do Marcelo, do Roberto, do Carlos, do Eduardo, do Paulo, homens com quem tinha namorado nos últimos meses. Lembrava-se de namoros de férias, de namoros em outros países, de chances perdidas de casamento, enquanto estava investindo na carreira.

O tempo se esgotava, a noiva iria chegar, pensou que poderia ligar para desmarcar, mas não conseguiu se mover. Foi até a cozinha e tomou um antiácido, seu estômago ardia por causa do almoço que tinha engolido muito rápido, enquanto fazia os últimos acertos no vestido perfeito de cauda longa, uma cauda cravejada de cristais que nadava até o meio da sala. Tinha preparado o ateliê com muitas rosas e cravos, o lugar tinha ficado impregnado com aquele odor, que enchia os pequenos espaços entre um ponto de linha e outro, cheiro que navegava dentro daquele imenso vestido que ocupava o centro da sala principal do ateliê, e que estava postado ali, como se estivesse em um palco, porque tudo em relação a uma cerimônia de casamento se torna espetáculo.

Antes de se casar com seu atual marido, Marcos tinha sido o último a pedir que ela se casasse com ele, Francis tinha dito mais uma vez que não, porque parecia que aquele homem, ainda não era o ideal na ocasião ideal, apesar de sentir suas entranhas em fogo quando pensava nele, apesar de estar apaixonada por ele, mas não conseguiu admitir isso. Arrependeu-se, e mesmo assim, um ano depois, casou-se com um empresário francês que investia na bolsa. Marcel parecia atender todas as expectativas de sua longa lista de homem ideal, lista que realmente tinha escrito, e na qual se enfileiravam dormentes, todas aquelas qualidades que ela ambicionava. O problema é que não era realmente seu desejo ter um homem como Marcel, aquele desejo tinha sido herdado da família, dos pedigrees da sociedade com a qual convivia.

Pensou que o ideal teria sido queimar aquela lista patética com as qualidades do homem perfeito, o ideal seria costurar casamentos, bolos, fotos de casamentos, flores, menus, garçons, recepções, véus e vestidos, e mandar entregar em algum endereço errado, ou que não existisse, e então ninguém poderia cobrar dela uma conduta adequada, porque tudo desapareceria no vazio.

Ela se sentia um pouco culpada por ter casos, se sentia culpada por costurar imperceptivelmente, dentro do vestido de cada uma das noivas, palavras de desabafo como: burra, desencalhou, tédio, enganação, que horrorosa cerimônia, meus pêsames, e outras palavras. Cada noiva levava em seu vestido, sem o saber, uma lembrancinha especial, Francis costurava em segredo em algum lugar daqueles vestidos impecáveis, uma espécie de maldição.

Ela adorava os encontros casuais, porque o desejo, a loucura, a carnalidade, podiam se manifestar sem música nupcial, sem tédio, sem cheiro enjoativo de flores por todo lado, sem bolo adocicado, sem vestido e véu, sem contrato, sem mentiras. Ela gostava de ter seu cabelo farto puxado com força para trás, dos sons de prazer que eram tão diferentes dos gemidos que emitia com as picadas de agulhas que a faziam sangrar. Se lembrou que uma vez tinha se picado, e que um mísero pingo de sangue caiu em cima de um vestido imaculado. Ela desejou macular todo o resto do vestido, mas não pôde, teve que se conter e limpar o pingo de sangue como se lutasse por sua vida! Não conseguiu, e foi obrigada a refazer o vestido. Todos aqueles momentos de contenção e fadiga, pareciam ter se acumulado, e estavam se preparando para causar um desastre. Ela não fazia a menor ideia do que faria. Ela caminhou deslizando no vácuo até o armário do lavabo e encontrou a resposta, porque a campainha tocou.

Ela demorou um pouco para se mover, mas foi até a porta e atendeu com um sorriso a noiva sorridente. Não conseguiu ouvir nada do que dizia a noiva, em todo o tempo em que esteve em seu ateliê, ela só sorria, e como já sabia todas as respostas para todas as perguntas, ela respondia como uma máquina. Alfinetou, corrigiu a barra, olhou de longe para avaliar o que tinha feito, sorriu, alfinetou, ajustou, sorriu, chamou a empregada para servir água, sorriu, pediu mais café, sorriu, pediu suco e champanhe, sorriu, ajustou um pouco mais e fez comentários sorrindo, pensou no seu último encontro casual, sorriu e repetiu palavras automaticamente, pensou no beijo de um homem totalmente careca que conheceu, bebeu champanhe e café, sorriu, se lembrou de outro homem, alfinetou outros pedaços, se lembrou de um rolex dourado que o marido tinha dado para ela de aniversário, sorriu e se distraiu, alfinetou a pele da noiva que gemeu, e ela sentiu profunda satisfação, sorrindo e pedindo desculpas, mentindo que aquilo nunca tinha acontecido.

Pensou em divórcio e teve preguiça de continuar pensando naquilo, não iria estragar ainda mais os seus olhos e mãos, precisava de segurança e sossego no futuro, se lembrou do saldo bancário crescente do marido, se pegou dizendo para a noiva “Parabéns pelo casamento” e sorriu quando se despediram.

Ela tomou o resto do champanhe, esticou as pernas e suspirou. Dispensou os empregados. Ficou imóvel, enfrentando uma parede que se formava bem na sua frente, a parede da sua vida aparentemente imutável. Ficou parada no meio daquela sala que lembrava uma nave de igreja, ficou ali sorvendo o perfume das flores que enfastiava porque era doce demais.

O que ela queria era alinhavar sua boca ao beijo perfeito do homem careca, desabotoar todas as regras e as convenções, todo o suor de um trabalho que mais parecia uma barra desfeita, ela queria costurar novos pontos em sua rotina, pespontar em direção ao que não conhecia, porque todos aqueles vincos causados pelo passado não a confortavam mais, eram uma espécie de viés mal-arranjado onde parecia faltar alguma coisa. Mas como ela era covarde, não faria aquilo. Ela exibia termos de costura como aqueles o dia todo, se movendo pelo ateliê, e ainda outros, mais refinados: “À la dernière mode”, “balconné”, “savoir-faire”, “evasê”, “degagè”. Seus familiares adoravam colocar palavras estrangeiras no meio de uma frase, palavras como: marketing, pedigree, vintage, free shop, commodity. Aquelas palavras eram vazias, não tinham mais o significado e sabor que um dia tiveram, e ecoavam como mais uma de suas mentiras.

Jurou que não atenderia a próxima noiva no dia seguinte, mas ela sabia que mentia e mentia. Encarando seu rosto bonito no espelho, retocou a face com pó, sombra, rímel e batom, vestiu o casaco caríssimo e se preparou para o segundo ato, que seria viver mais um dia do seu casamento. Ela sabia que iria sorrir para o marido, iria fazer perguntas pertinentes para ele como uma máquina, sorriria e responderia todas as perguntas que seu marido fizesse com respostas pertinentes, sorriria e fingiria se importar, sorriria e leria alguma coisa antes de dormir, sorriria e apagaria o abajur, sorriria dizendo “Boa noite” para Marcel, receberia o beijo perfeitamente engomado do marido em sua face, sorriria e pensaria no beijo perfeitamente molhado do homem careca, sorriria com gosto, pensando que aquilo sim, era um motivo para se levantar no dia seguinte!

Aquele poderia ter sido mais um dia “perfeitamente feliz”, mas ao invés disso, o marido ligou para ela no ateliê:

— Vamos fazer nossa brincadeira hoje? Te espero, me surpreenda! Tem um presente esperando por você se fizer tudo direitinho.

Desligou, sua vontade era moer o celular. Ao invés disso, guardou o celular e fez os últimos retoques de maquiagem no rosto. Escolheu cuidadosamente um dos vestidos de noiva para levar para casa.

Jantaram, Marcel tinha encomendado o jantar em um dos restaurantes mais caros de São Paulo, especializado em carnes, jantaram bife de chouriço com batata suflê. Ele sempre fazia aquilo em dias especiais, encomendava o jantar, escolhia um champanhe vintage. Dispensaram o serviço de copa. Beberam os últimos goles do vinho que acompanhou o jantar, beberam gim com especiarias, checaram os últimos e-mails e redes sociais.

Marcel tinha reservado uma garrafa de champanhe vintage, Moet Chandon Rose. Ele adorava aquele gesto, que antecipava os prazeres que estavam por vir. Ao engolir os primeiros goles de champanhe, seu corpo se enrijeceu, porque a memória de prazeres passados ecoou ao sabor do champanhe.

Depois da digestão, Francis se meteu na banheira, onde ficou por tempo demais, pensando que deveria ter se recusado a fazer o que o marido tinha pedido para ela, quando telefonou para o ateliê. Relembrou-se do seu dia, pesou todos os prós e contras que envolviam sua situação pela décima vez. Essa era sua rotina, ela sempre pesava todos os prós e contras e acabava no vazio, fazendo todos os dias a mesma coisa, arrastada pela força do hábito, como se seu corpo não fosse orgânico, mas um dispositivo, um autômato. Ela relembrou-se dos rostos dos homens com quem tinha tido relações sexuais nos últimos meses, ouviu o marido que a chamava. Ela pensou que poderia simplesmente se recusar, dizer não, seria tão simples! Não conseguia. Fez o que precisava fazer, se arrumou para o marido, afinal fazia tempo que ele não a requisitava, não custava nada fazer o que ele queria, assim ele a deixaria em paz por mais uns meses. Caprichou na maquiagem, no perfume, na lingerie branca.

Quando entrou no quarto e se viu no espelho, sentiu nojo. Decidiu imediatamente que aquilo não podia continuar, mas continuou, porque o marido a puxou com força e a comprimiu contra a barriga e o peito. A imagem do espelho devolvia para ela a humilhação, ela se via vestida de noiva, obrigada a satisfazer o fetiche do marido, que a forçava a se vestir de noiva periodicamente, cada vez com um estilo diferente, e pior, a sujeitava a representar uma cena repugnante, em que ela ainda era uma moça virgem na sua noite de núpcias. Ele já tinha agendado para ela uma cirurgia de rejuvenescimento do sexo e restauro do hímen para comemorar suas bodas de cristal, os seus quinze anos de casamento. Marcel fazia questão de que ela não tirasse o vestido durante o sexo, acariciava seus seios sentindo-os debaixo do tecido, puxava o decote para sugar os bicos dos seios e logo os cobria de volta. Era como se fosse um jogo de sombras, em que partes do seu corpo eram reveladas e escondidas outra vez, sob um vendaval branco, sob o formato de mangas de vestido como copos de leite e que vertiam fluidos proibidos, sob uma extensa fila de botões que se curvavam com o peso de suas costas, que envergadas, se movimentavam em cima do sexo do marido. Ela queria rasgar aquele vestido com tanta força, que os botões nunca mais se fechariam, que permaneceriam abertos por toda a eternidade, porque se espalhariam pelo chão do quarto e ficariam ali, como se nunca tivessem sido fechados. O abraço do marido parecia ser aquela casa de botão que sufocava o pequeno botão em uma clausura.

Algo se rompeu dentro dela, agarrou a arma que estava na gaveta da mesa de cabeceira, a arma que era de Marcel, disparou todas as balas, o sangue jorrou abundantemente e finalmente tingiu, arruinou o vestido de noiva.

Denise Courtouké: atriz e escritora paulistana, estudiosa das linguagens do teatro, dança, literatura, dramaturgia do corpo e do ator, participando de vários festivais de teatro nacionais e internacionais; assinou as dramaturgias teatrais “Camille Claudel, Divino Impulso”, com apresentações no Sesc Vila Mariana, “A hora da estrela”, no Sesc Pompéia, e “Entrevistas sobre a decadência”; entre seus títulos figuram os romances “Olhos feitos de poeira de estrela e névoas”, “Ventre de vegetação e lama”, “Relatos de sangue e vácuo”, o livro de contos “Com as letras da tua voz”, o livro de poemas “Rubros”.

E-mail: denisecurtouke@gmail.com