Eles são tão importantes que se ouviu Guimarães Rosa dizer que Deus está nos detalhes; ou God is in the details, conforme o arquiteto norte-americano Frank Lloyde Wright; ou Le bom Dieu est dans le detail, segundo o romancista francês Gustave Flaubert;ou Gott gedeiht in Details, Gott ist in den Details, Gott steckt im Detail, de acordo com o arquiteto alemão Ludwig Mies van der Rohe.
Por isso,
põe quanto és / no mínimo que fazes – diz Fernando Pessoa, que conhecia o poder das pequenas coisas. Assim em cada lago a lua toda / brilha, porque alta vive
Bem, mas se engenho e empenho propiciam tais momentos significativos na História da Arte, em que poemas, romances, quadros… excelem justamente numa e noutra coisa aparentemente menor, a verdade é que tais closes em geral surpreendem os próprios artistas quando aparecem, daí a conclusão de que nesses momentos “Deus” dá as caras nessas obras. A primeira vez que tive ciência disso foi através de um livro que ganhei aos onze anos – Primeiro Encontro com a Arte, das Edições Melhoramentos…
… que me chamou a atenção para o minúsculo cavaleiro no canto superior direito do quadro Respigadeiras, de Millet.
Karl-Heinz Hansen afirmava que “os braços das duas mulheres recurvadas mostram em seu trabalho uma tendência para baixo, dão ao quadro um peso para a esquerda. Para compensar, Millet utilizou-se do cavaleiro no alto, à direita”.
Igualmente deslumbrado me vi ante o equilíbrio do imenso Descida da Cruz, de van der Weyden, com João evangelista à esquerda e Madalena à direita, emoldurando a cena sacra como se a colocassem entre parêntesis, enquanto – no centro do drama – a Virgem, desmaiada, repete exatamente a pose de seu filho morto, criando, com isso, um pas de deux maravilhoso…
… que Miguelangelo reprisaria, em seguida, na Criação do Homem:
Mas meu maravilhamento foi às alturas quando percebi a diferença entre a palidez da mater dolorosa e o livor esverdeado do cadáver baixado da cruz. Compare-se, também, a cor dessa Maria com a da outra, que chora à esquerda, nariz, olhos e boca congestionados pela emoção.
Por outro lado, todos os que comentam o estupendo Tríptico Portinari, de Hugo van der Goes – uma proeza de elaboria – salientam – acima do que se vê na sagrada família e nos anjos representados, a qualidade do minúsculo retrato da menina Margherita Portinari, na extremidade direita da obra…
… tão preciso na reprodução do seu colar como na da expressão de seus olhos ante a Natividade:
A expressividade também vai ao máximo no detalhe do grupo escultórico Burgueses de Calais, de Rodin, onde o gênio francês flagrou o desespero dos seis homens mais importantes da cidade ao se entregarem a Eduardo III, da Inglaterra – durante o cerco imposto na Guerra dos Cem Anos – em troca da salvação para o povo faminto. A condição era de que fossem até ele com as chaves do burgo e já com as cordas para seu enforcamento no pescoço..As reações do grupo retratado, como na Última Ceia de Da Vinci, são várias. Mas repare no homem que está na extremidade direita – oculto atrás dos outros, mais desprendidos – com as mãos na cabeça:
Foi nele que Rodin teve seu maior momento. Veja a beleza e a força dessas mãos:
Por oportuno, observe o grande tento obtido por Georges de La Tour nesta obra – “São José Carpinteiro”. Não no santo…
… mas no menino Jesus.
Ou melhor, no detalhe da sua mão tornada translúcida pela chama da vela que ele protege:
Também nesta escultura de nosso contemporâneo Ron Mueck…
… o ponto forte, sem dúvida, está em suas mãos extremamente realistas:
Mas a força dos detalhes é sempre inesperada. Repare na grega Vitória de Samotrácia, exposta no Louvre. Sem a presença de sua cabeça nem das mãos, perdidas não se sabe onde nem como…
… ganhou notoriedade pelo ímpeto de seu movimento e pelo detalhe – aparentemente impossível – com o qual o artista deu à pedra a impressão da transparência de um véu:
Mais inesperado ainda foi o detalhe que tornou famoso um dos primeiros trabalhos de Velázquez, El aguador de Sevilla:
as gotas d´água escorrendo cerâmica abaixo, no seu pote maior:
Ainda na Espanha, agora em Barcelona, a surpresa dos detalhes da fabulosa e estranhíssima igreja da Sagrada Família – do arquiteto Antoni Gaudí – está…
… nos delirantes pináculos de suas torres:
Insólito, também, é o detalhe principal deste Soldado com a moça sorridente, de Vermeer:
O mapa da Holanda na parede é tão exato que se reconhece a impressão de Willen Blaeu feita a partir do trabalho do cartógrafo Balthasar van Berckenrode:
Mas pense no flagrante belíssimo que encontramos nesse mar de detalhes que é o teto da Sistina, de Miguelangelo, na sibila que parece dançar no canto direito inferior desta foto:
Ela é notável! O artista adotou, por modelo, um dos gays de que sempre se cercava…
… e o resultado foi vigoroso.
Mas não há dúvida de que o rosto tende a ser o ponto alto da expressividade humana obtida em Arte, como o deste Tomas Morus de Holbein, o Jovem, no qual se percebem até os fios já grisalhos da barba por fazer, do retratado:
É tão forte, o resultado, quanto o deste Davi, de Bernini. Só que, aqui, o centro da atenção se torna…
… a boca:
Esses dados me lembram detalhes preciosos de três obras literárias:
No Grande Sertão:Veredas há closes incríveis. Como o de Jazevedão: “nunca vi cara de homem fornecida de bruteza e maldade mais do que nesse. Como que era urco, trouxo de atarracado, reluzia um cru nos olhos pequenos, e armava um queixo de pedra, sobrancelhonas”.
E o narrador tem, também, algumas sutilezas. Jagunço, muito macho, confessa, ao se lembrar do companheiro de lutas:
“Diadorim é a minha neblina…”
Cem Anos de Solidão já começa com uma imagem primorosa:
“Macondo era uma aldeia de 20 casas de barro e cana-brava construidas na margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos.”
Na Eneida:
“Uma escura seara de espadas nuas estende-se em grande extensão, os bronzes fulgem batidos pelo sol e se refletem nas nuvens”.
E, quando a mãe de Euríalo sabe da morte do filho:
“De súbito, o calor abandonou as entranhas da desventurada, caiu-lhe da mão a lançadeira e desenrolaram-se os fios”.
Esse lance lembra o que se lê no início do roteiro de Herman Mankiewicz e Orson Welles para Cidadão Kane:
INT. KANE’S BEDROOM
Interior, quarto de Kane
Há uma cena de neve, improváveis flocos de neve, uma casa de fazenda. Ouve-se a voz de Kane muito, muito velho:
– Rosebud…
– Botão de rosa…
A câmera recua, vê-se que a cena ocorre dentro de uma bola de vidro, dessas vendidas em todo o mundo. A mão de Kane, que a está segurando… relaxa… e a bola cai, saltando dois degraus.
Cria-se o enigma: “O que ou quem é Rosebud?” A sequência final de Cidadão Kane – considerado por muitos como o melhor filme de todos os tempos – é um longo travelling por todas as milhares de coisas que fazem parte do espólio do personagem, terminando num trenó onde se lê “Rosebud”: o brinquedo que lhe fora tomado…
… quando ele teve de abandonar seu paraíso e assumir a herança enorme da família, levando em frente o patrimônio pelo qual todo mundo iria odiá-lo.
Outro filme criado em cima de um detalhe:
Nele, um fotógrafo entediado clica seguidamente as imagens de um casal prestes a fazer amor num bosque…
… e acaba descobrindo…
Bem: veja o filme ou leia o conto “As Babas do Diabo”, de Cortázar, em que Antonioni se baseou. Curioso, também, é Blow Out, oriundo de Blow-up, em que o engenheiro de som interpretado por Travolta descobre um crime ao ampliar e limpar o som suspeito de um pneu estourando, na trilha sonora que prepara para um filme.
Shakespeare, como sempre, tem algo a dizer, genial:
“There’s a divinity that shapes our ends,. Rough-hew them how we will.” Hamlet Act V scene ii …
Há uma divindade que molda nossos projetos, por mais toscos que eles sejam.
Acredito nisso. Daí tais detalhes notáveis.
W. J. Solha: romancista, poeta e ensaísta paulista radicado na Paraíba, é também dramaturgo, ator, artista plástico e publicitário, com vários livros publicados e premiados, transitando em várias frentes de nossa cultura; um artista "multimídia" por excelência.
E-mail: waldemarsolha@gmail.com