A faxina na modesta biblioteca era uma das poucas alegrias de sua vida. Botava um Villa-Lobos para tocar, tirava os livros das prateleiras, espanava-os, sentia nas mãos a delícia das texturas, contemplava a beleza do projeto gráfico dos volumes mais queridos, revia anotações, enfim… Um dia inteiro ali, dentro do quarto, conversando com eles, mudando as estantes de lugar e a ordem de cada título – ou dos grupos temáticos – nas pranchas de madeira.
Tudo muito cansativo. Ele porém sentia-se espiritualmente renovado após concluir a tarefa, muitas vezes com a lua já alta no céu. Então entornava meio copo de cachaça, misturada com mel de abelha e folhas maceradas de hortelã, para neutralizar os efeitos nocivos da poeira, tomava banho, depois vinha deitar-se na espreguiçadeira, de onde ficava contemplando o escritório asséptico, aquele cheirinho de coisa limpa pairando no ar.
Tinha o hábito de guardar certas preciosidades dentro dos livros. Cartas, bilhetes e cartões, por exemplo, enviados por amigos e familiares, iam parar dentro de um Shakespeare, de um Cervantes, de um Dostoievski, e ali permaneciam preservados, no entanto esquecidos, até serem redescobertos nos manuseios de uma nova limpeza. Uma felicidade reencontrar e reler aqueles documentos pessoais; era como achar pérolas dentro de ostras.
Os grifos e anotações também eram fontes de prazer. Não era necessário reler a obra. Bastava passar os olhos novamente pelas linhas sublinhadas, e a substância do texto caía-lhe como vinho na taça. Mas às vezes acontecia de não saber mais o sentido daquela palavra escrita com lápis grafite à margem de um parágrafo. Lia tudo de novo, a maior paciência, mas não conseguia acender a lâmpada daquela ideia. Quem sabe outro dia a coisa se aclara.
Por estes dias, percebeu que as datas entre uma faxina e outra estavam se alongando. A mente lembrava, mas o corpo parecia olvidar. O dia de limpeza também estava ficando mais curto. Quando dava por si, a noite havia chegado, embora muitas estantes continuassem empoeiradas. A cachaça foi substituída por uma xícara de chá, e a espreguiçadeira pela cama. Despertar virou um tormento, vez que lhe doía quase toda a musculatura.
Visto de outro cômodo, parecia meio empenado e ressecado. Igualzinho às capas de algumas encadernações antigas, que o tempo vai desgastando, apesar do excesso de zelo, sem que ninguém perceba. Outro dia viu alguém espanando os livros em seu lugar. Mais um pouco, e será visto, alegre e pujante, mudando os livros e as estantes de lugar, até ter sua imagem desfocada pelas lágrimas dos olhos da filha que, parada na porta, observa a biblioteca vazia.
William Costa: jornalista de carreira e escritor paraibano, editor do suplemento cultural Correio das Artes, cronista do jornal A União, tem vasta experiência em veículos de imprensa e é autor do livro de crônicas e contos Para tocar tuas mãos - Chronesis.
E-mail: wpcosta.2007@gmail.com