Vamos chamá-lo assim, Adamastor Bernardino, o herói dessa história, que nem eu nem ninguém jamais saberá se foi caso acontecido ou coisa nascida da imaginação fértil do cronista. O fato é que Adá – como era conhecido desde menino na cidade onde nasceu e da qual jamais saiu – ficou chateado, pela primeira vez na vida, não pela razão de ter sido aposentado compulsoriamente, aos setenta, mas pelo desabafo que ouviu da mulher, ao chegar em casa.

Adá pôs os pés na sala escura do Escritório aos dezessete. Indicado por um primo ao deputado que determinava o tempo na região, chegou para auxiliar na organização, botar ordem na casa, tendo em conta que o chefe e os dois assessores tinham marcas de suas bundas talhadas nas cadeiras do Bar de Aderaldo, e nenhuma impressão nas giratórias que a Matriz, na capital, enviara, na ilusão de que a ergometria solucionaria o problema da baixa produtividade.

Vinte anos depois, Adá assumiu a chefia do Escritório. Méritos nunca lhe faltaram, mas a promoção só veio depois que os sucessivos cabos eleitorais, digo, diretores foram ocupando cargos comissionados na Prefeitura, no Governo, na Assembleia – um, inclusive, tirou a sorte maior, ao ser efetivado, sem concurso, no Congresso Nacional -, até que o primo cobrou providências do velho prócere, passando-lhe na cara todos os votos da família Bernardino.

A partir da gestão de Adá, o Escritório não voltou mais a receber benefícios materiais, apesar dos inúmeros processos de modernização que transformaram a Matriz em um modelo de empresa, no setor em que atuava. Também não foram mais indicados auxiliares. Adá se virava nos trinta para manter sala e banheiro livres de poeira, formigas e baratas, e bancava com recursos próprios a reposição de lâmpadas, consertos da máquina de datilografia, xerox etc.

Dos trinta e sete aos setenta, Adá nunca faltou ao expediente. Assinava o ponto no horário determinado e o cumpria fielmente. Trabalhou em condições desagradáveis. As inesquecíveis foram dois desarranjos intestinais que o obrigaram a labutar os dois turnos sentado no vaso sanitário, uma enxaqueca que quase fazia voar o tampo da cabeça e quatro ou cinco crises de asmas que faltou pouco para o pobre funcionário expelir os pulmões no cesto de lixo.

As cópias dos ofícios encaminhados e nunca respondidos, quer dizer, todos os documentos eram arquivados com o maior zelo nas pastinhas de papelão, todas com plaquinhas indicativas escritas a mão com hidrocor. Os jornais do mês permaneciam no cavalete. Já as edições anteriores, por ano, transformaram-se em grandes livros encadernados em azul, sua cor preferida. Adá arrumava e espanava tudo, depois cruzava as mãos sobre a mesa e… ficava à espera.

Durante a idade de Cristo a rotina de Adá, no Escritório, pouco ou em nada foi alterada. Assim como o contracheque, que só não permaneceu com a mesma pecúnia porque a moeda nacional mudou de nome. Durante uma visita do Todo-Poderoso, chegou a insinuar que o vencimento carecia de “atualização” – faltou-lhe coragem para pronunciar o sacrílego “aumento” -, mas calou-se depois do “vou pensar no assunto”, respondido com total indiferença.

Adá viu-se aposentado numa segunda-feira de manhã. Ninguém lhe agradeceu ou elogiou por nada. Não tinha a quem apertar a mão, despedir-se, passar o cargo, dar alguma orientação, nada. O motorista da Kombi que levou os móveis do Escritório disse apenas que ele podia ficar com as chaves. Alguém vai pegá-las mais tarde. Chegou em casa como cachorro que caiu da mudança. Ensaiou um protesto. Dediquei-me tanto ao serviço… De besta!, cortou a mulher.

William Costa: jornalista de carreira e escritor paraibano, editor do suplemento cultural Correio das Artes, cronista do jornal A União, tem vasta experiência em veículos de imprensa e é autor do livro de crônicas e contos Para tocar tuas mãos - Chronesis.

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