Por vezes, certas palavras se nos enfiam cabeça adentro, se aninham, ficam. Pior, incomodam. Por mais que se queira expulsá-las, permanecem.  Recrudescem até, que atiçar exclusão é avivar presença. E qualquer coisa que se diga ou faça, escute ou enxergue, é sempre aquilo, aquela palavra que se intrometeu, intromete, e não desgruda.

Aconteceu-me com a palavra “idílio”. Vinha de anos e vinha de lá, de Campos Novos, Santa Catarina. Qualquer cena de campo, bicho ou ser humano em moldura de natureza, virava-me um idílio. E, o pior, ainda hoje eu nem sei bem o que é um “idílio”.   

Sempre que visito meu filho Diego, em Campos Novos, um dos meus prazeres é deixar-me sentado na área-de-frente da casa e contemplar a paisagem. A casa fica no  bairro  Nossa  Senhora   de Lourdes, uma quadra e pouco atrás do ginásio de esportes do Colégio das Freiras. Na frente da casa e do outro lado da rua, atrás do Colégio e propriedade deste, estende-se, por um quarteirão inteiro, um potreiro para a pastagem de gado leiteiro. A grama é verde e folhuda e tem jeito de ser macia. Algumas touceiras de inço, resto de capoeiras, muitos gravetos secos e abandonados, cupinzeiros, bosta de vaca, uns raros quero-queros, por vezes um bem-te-vi ou um casal de joão-de-barro fazendo estardalhaço em prenúncio de chuva. No centro do potreiro, majestoso, um velho pinheiro.

E a área toda é cercada com arame farpado, caindo, postes capengas, tramas soltas. Apenas um moirão, lá embaixo, à direita e no canto, está plantado firme e tenta segurar a cerca toda. No tope desse moirão, está a casa dos joões-de-barro, coisa que me intriga. Como é que ninguém a derrubou ainda? Sempre existe algum maldoso. Depois, não é lugar muito comum pra joão-de-barro. Em todo caso…

Para além do potreiro, depois da baixada, longe, o morro com os reservatórios de água para a cidade, as torres de tevê, rádio… Mais longe ainda, azulando para o infinito, os recortes da serra, o céu, o sul.

Sentar na área da casa do meu filho Diego, em cadeira de campanha e sugando um chimarrão, é coisa de paraíso. No ar, um cheiro agreste e puro, de encher pulmões. É tardezinha, raios de sol perfuram folhagens de árvores próximas e riscam estrias pelo potreiro. Vacas, três ou quatro, pastam calmamente, espanejam moscas com a cauda, olham em volta enquanto mastigam, ou ruminam, baixam a cabeça e prosseguem na faina de tosar a grama.  São de raça holandesa, pelame preto e branco, luzidias, bem cuidadas, têm os úberes fartos.

Dois bezerros estão presos mais adiante, acima, perto do Colégio, atados por soga. Dão a impressão de já serem desmamados mas, então, por que estariam presos? Parece que não se conformam muito, volta e meia tentam alguns pinotes ou corridas. Não dá muito certo, a corda estica, soqueia, e eles se desequilibram. O menorzinho, agora mesmo, partiu em disparada, a corda distendeu, as patas dianteiras subiram no vazio, as traseiras vergaram e ele caiu de bunda no chão. Rodopiou, levantou-se, partiu pra outra. É a irrequietude da idade.

A mesma irrequietude dos meus netos que estão aqui, mais próximos, em volta do pinheiro. Jogavam bola, cansaram, trocaram de brincadeira. Inventaram uma luta de mocinho e bandido, faroeste ou coisa que o valha. Com suas pistolas de galhos quebrados, escondem-se atrás das pequenas moitas ou cupinzeiros, rastejam de um a outro, escondendo-se e caçando-se.

Só o Eduardo agora mudou de tática. Arrastou-se para cá, até o velho pinheiro, sentou-se calmamente. De costas contra o tronco, bunda e pés no chão, joelhos erguidos, antebraços sobre estes, ficou a manobrar a pistola de galho como se estivesse a recarregar. Conferiu o tambor, girou, mirou à-toa, uma vaca, um bezerro, recolheu a arma, passou a mão no cabelo como quem ajeita o chapéu, deslizou-se mais para o chão, começou a voltar-se. Devagar, que era cauteloso e ia para o tudo ou nada. Subiu-se junto ao tronco do pinheiro, firmou as pernas um pouco abertas, era o mocinho, engatilhou a arma e preparou-se para o ataque.

Para vislumbrar algum inimigo pelo lado do tronco, precisou dar dois passos à esquerda ─ ele é canhoto. A grossura do tronco era tamanha que bem podia esconder quase três eduardos. E o tronco era nodoso e subia longe. Lá no alto, perto do céu, uns poucos galhos semelhavam rosa-dos-ventos. 

O que chamava a atenção era a regularidade dos nós, que circulavam o tronco. Os círculos aconteciam em sequência, do pé à crista, a espaços de metro, talvez, se tanto. E isso me confundia, era sinal de alguma sabedoria da natureza.

Seriam anos de idade, disseram-me. Não sei, nem sabiam ao certo. Cada intervalo de círculo corresponderia a dez anos de crescimento, cem, mil. Contei mais de vinte e cinco círculos de nós, sempre parei perto dos trinta, nunca cheguei ao total, a altura perdia-me. Então, se fossem dez anos, o pinheiro teria pelo menos duzentos e cinquenta anos; se cem… dois mil e quinhentos; se mil… Ah, não, meu Deus!

Por aí, por tudo isso e mais um pouco, ou muito mais ainda conforme o chimarrão, o sol e o sul, entrava-me o tal “idílio” cabeça adentro. Quando voltava para o sul da minha querência, eu logo tratava de sufocá-lo, amordaçá-lo, expulsá-lo de mim. O máximo que conseguia era acalmá-lo, amortecê-lo, anestesiá-lo. Nunca eliminá-lo. Sempre, uma calmaria só até a próxima viagem à casa do Diego.

Não foi o caso da última viagem. Aconteceu na Páscoa e fazia mais de ano que eu não visitava meu filho ─ um crime! Eu ia cheio de ânsia, sonhava com abraços e carinhos, ternuras de família. Sabia que ele tinha embelezado a casa e eu estava curioso por ver. Sentaria na área, contemplaria o jardim com gradeado novo e novo gramado e flores, encheria os pulmões com ar puro e fresco, deixaria os olhos atravessar a rua e reviver as cenas dos meus idílios.

Cheguei/chegamos, de noite. No outro dia, de manhã, quando saí à área, o baque. Não havia mais potreiro, a grama tinha virado lavoura de soja. O cercado era novo, de arame bem esticado, postes de concreto. Das vacas e bezerros nem sinal. E o pinheiro, meu Deus do céu!, cadê o meu pinheiro?!

Estatelei, fiquei estacado. Mudo, em contemplação. Aos poucos, devagar, os olhos foram subindo, ultrapassando a lavoura, buscando os longes, além da baixada, o morro das tevês, os recortes da serra, o azul do infinito, o céu, o sul… o sul da minha saudade.

Nelson Hoffmann: escritor, professor, advogado e filósofo gaúcho, autor de vasta obra literária, com destaque para a série de livros protagonizada pelo detetive policial João Roque Landblut, também é profundo estudioso da história do Rio Grande do Sul, da cultura indígena e da região das Missões.

E-mail: nelson.hoffmann@yahoo.com.br