Nêgo Dão era louco de nadar na Lagoa do Gargalo. Caiu na água de nascença. Mergulhava perto do sumidouro e vinha sem fazer onda até a Pedra da Oiticica. O lajedo exibia o corpo na forma de uma enorme corcunda, escondida sob a velha árvore, para festa da meninada, que a fazia de trampolim. Dão era o herói daqueles garotos. Eles invejavam seu fôlego, sua força, sua coragem, mais que tudo, sua vadiagem, sempre acompanhada de risos e brincadeiras.
Nêgo Dão não gostava de safadeza. Diziam isso em todas as casas, na praça, nas bodegas. Fugia das cenas de fêmeas no cio, na beira do Gargalo, não importava se égua ou jumenta, como o diabo foge da cruz. E só tomava banho com os meninos em bando. Se dois ou três, evitava chegar perto d’água, nem se embrenhava pelos matagais. De meninas, moças, mulheres, Dão queria distância. Não era besta de arriscar nem mesmo um rabo de olho.
Não lembrava onde, ouvira alguém contar uma história terrível de cachorros. Animais ferozes, açulados pela dona, para devorar um cabra que a viu nua. Algo assim. A gente escuta uma história, e já conta diferente. Nêgo Dão dizia isso, sorrindo, todas as vezes que contava suas histórias, para os amigos, e que nunca eram histórias “dele” – eram sempre “de ouvir dizer”. Dão era precavido. A história de seu pai lhe fora mal contada, mas desta ele sabia.
Parte da Lagoa. Era assim que Nêgo Dão se sentia. Traíras, cobras, garças, cágados, cururus… Os bichos áqueos não se espantavam quando ele timbugava espalhafatoso, e continuavam caçando e comendo-se uns aos outros, sem se importarem com o corpo nu que deslizava entre as samambaias. Dão gostava de carne de peixe, não; só de boi e bode. Talvez fosse esse o segredo de suas boas relações com a fauna aquática que insistia em sobreviver por ali.
Nêgo Dão deu três voltas na Lagoa, a braço. Ao sair da água, percebeu que ele e os arredores estavam mudados. Pelos aninhavam-se nos cantos do corpo. Lembrou-se que o mesmo havia acontecido com os amigos, coisa que observara no último banho que tomaram juntos. Lá para depois dos pés de manga, outras novidades, como a casa, desigual das outras, destoando absurdamente do casebre, caindo aos pedaços, onde Dão nascera e morava com a avó.
No alto do lajedo, onde subira para pegar a roupa – para ele, era o mesmo que beber água, chupar caju ou comer feijão -, Nêgo Dão tomou um susto. Aquela mocinha, linda de entronchar os beiços, não era uma alma dali. Ou era? Afinal, vinha direto do lado da casa nova, que aparecera logo após as mangueiras darem a safra do ano por encerrada. Os dentes de Nêgo Dão pareciam duas carreiras de carneirinhos; estampados brancos contra o azul do céu.
A moça desapareceu entre os galhos da sebe baixa da Oiticica, e reapareceu como um espanto. Um grito, de corte fino que nem gilete, bem em frente à Pedra onde Nêgo Dão tresvariava com o calção pendurado na mão. A moça sumiu de novo na folhagem, e ressurgiu no caminho das formigas, tomando o rumo de casa sem olhar para trás. Foi aí que Nêgo Dão tomou ciência de que os olhos dela o acertaram da cintura para baixo, então vestiu-se, apressado.
Ninguém ouviu o que Simetra – esse era o nome da menina – disse ou deixou de dizer ao chegar a casa. O que se sabe é que veio de lá um alarido de latidos, tiros e palavrões. Nêgo Dão, sentindo o calafrio do medo, botou uma touceira de samambaia na cabeça, lambuzou-se do barro amarelo que fez a fama do Gargalo, e danou-se capinzal adentro. Foi assim que encontraram, amordaçado pelo terror, o bicho mais estranho que Deus cismou de criar por ali.
– Atire não, doutor, não fiz nada, não. Toinho, diga pra ele, sou eu, Adão, neto de Dona Adalgisa, viúva de Seu Francisco, do Alto do Jatobá. Para com isso, Jacaré, tá me estranhando? Beto, jogue fora essa faca, hômi, hoje não estou de reinação! Marquim, Pedro, Jerômo… Que é isso, rapaziada? – Cabra ou bicho safado, aqui, no Gargalo, você não vai espiar menina-moça tomando banho, não. Vai manducar, sim, esse trinta-e-oito e aquela doze polegadas.
Ia repetir que era Nêgo… mas os cachorros lhe caíram em cima. Os homens riram do espetáculo, depois foram embora, talvez contentes por terem uma boa história para contar. No dia seguinte, quando Dona Adalgisa andou pela cidade à procura do neto Adão, transtornada igual o dia em que lhe assassinaram o filho, os amigos do Gargalo bem que tentaram, mas estava impossível comparar a boa imagem da memória com a feia carcaça abandonada pelos cães.
William Costa: jornalista de carreira e escritor paraibano, editor do suplemento cultural Correio das Artes, cronista do jornal A União, tem vasta experiência em veículos de imprensa e é autor do livro de crônicas e contos Para tocar tuas mãos - Chronesis.
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