O canto alegre e sonoro de um bem-te-vi desperta minha atenção. É sempre assim ao amanhecer. Os pássaros e as árvores são as estampas em primeiro plano de minhas caminhadas, com o céu e o sol nascente ao fundo. Desta vez não sorri apenas. Olhei o pássaro de terno preto e camisa amarela, bico proeminente, pousado na rede elétrica, dei-lhe bom dia e desejei-lhe boa sorte. Isso porque a vida dele é tão precária quanto a minha. Queira Deus que ambos cheguemos vivos até à noite, e daí até o outro dia, sucessivamente, anos a fio, até que a inelutável interrompa o ciclo, e nos leve embora.
Não caminho apenas para fortalecer meu bom coração e exaurir o colesterol ruim. Tenho respeito pela saúde da mente e do corpo, mas não estimo os modismos. Gosto de observar o entorno. As mudanças que o tempo vai implementando na cidade e nas pessoas, além das clareiras que abrimos na natureza. Claro, tenho olhos também para o que fazemos de encantador, como essa casa que tem a minha cara, mas não cabe no meu bolso. Uma sensação de estar dentro e fora de uma estrutura que não consigo definir direito. Nada tenho e nada sei, por isso caminho e penso, penso e caminho.
Sigo em frente imerso em reflexões. Quantos perigos rondam aquele pequeno pássaro, espécie muito comum aqui no bairro onde moro. Pode morrer do decesso invisível dos pássaros – quem já viu um cair de velho, durinho da silva? Mais certo, porém, é despencar de fio ou de galho, abatido pela pedrada certeira desferida pelo menino da baladeira. Ou levar tiro de gente grande por perversidade apenas. Sim, tem a mordida mortífera do gato, e também o bote da jararaca, embora esta, ao que parece, foi embora de vez, cansada de tanto fazer ninho e o trator destruir, na construção de condomínios.
Para mim, a festa do dia, cujo apogeu, ao contrário do senso comum, acontece ao amanhecer, não teria sentido sem os pássaros – “os cantores de Deus”. Tem os de canto melodioso, que arrebata, e que nem sei o nome – qualquer dia penso em instalar uma mesa sob as árvores da Waldemar Accioly, convidar Hildeberto Barbosa Filho, e ficarmos ali, tomando umas e outras, identificando quem é quem no catálogo aéreo das aves -, mas é o garganteio dos bem-te-vis que me faz um bem danado. São pássaros que me fazem sorrir, e atributo como esse, sejamos sinceros, é coisa cada vez mais rara, neste mundo.
De volta ao tema da precariedade existencial, não temos nem blindagem nem sorte melhores que as dos nossos amigos voadores. A vaidade encobre a nossa instável e sofrível condição. Estamos aqui, como diria Ariano Suassuna, largados no imenso palco do mundo – este sim, o verdadeiro teatro do absurdo -, personagens de um espetáculo cujo enredo e diretor desconhecemos, e que não temos a menor ideia de quando nem de como vai terminar. Os papéis muito menos foram escolhidos por nós, tanto que pode mudar a qualquer hora, inclusive com uma súbita saída de cena, para nunca mais voltar.
William Costa: jornalista de carreira e escritor paraibano, editor do suplemento cultural Correio das Artes, cronista do jornal A União, tem vasta experiência em veículos de imprensa e é autor do livro de crônicas e contos Para tocar tuas mãos - Chronesis.
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