As portas do guarda-roupa abrem-se de uma só vez. O sol das nove horas reverbera nos saltos, correias e fivelas das sandálias e sapatos de cores e formatos diversos. Lá de baixo daquele escarcéu de couro e plástico, de cheiro característico, ouvem-se vozes. Queixam-se, embora haja contentamento.

Finalmente, vamos passear. Tosse, tosse. Não via a hora. Faz tempo que só nos alimentamos de poeira e teias de aranha. Como você descobriu? Pela hora, irmãozinho. Até as oito, ela abre a sapateira para ir trabalhar. Passou desse horário, hurra! É calçadão de rua ou chão de loja, não tem erro.

O veludo azul de suas peles arrepia-se com o toque das mãos brancas e frias, um pouco suadas. Mãos delicadas, dedos longos, unhas sem esmalte. No anelar esquerdo cintila o ouro da falsa aliança. Bate sem piedade as costas de um nas costas do outro. E espirra no estilo moça fina dentro do ônibus: ti-chim!

Os pés têm a cor e a textura das mãos. E acomodam-se sem muito esforço nas duas canoinhas azul mediterrâneo. Falam baixo. Sorriem. Confabulam. Ela estaria mais “cheinha”. As partes de cima, que as palas não encobrem, estão macias e arredondadas, como dunas de seios que escapam do sutiã.

Bolsa, chave do carro, celular. Última aparição no espelho, para retoque. Tudo em ordem. Começa a aventura. Pelo ar. Sim, ela voa baixo ao volante de seu carro, vermelho como o sinal que acaba de deixar para trás. Como tantas outras coisas que se perdem em seus pensamentos, por considerá-las banais.

Deixa pisar fundo, vai! Ela gosta. Vê como sorri. Dá para traduzir a música que ela cantarola, lendo o movimento de seus lábios, que nunca viram um batom. Nem os de chocolate. Vai com calma. Vocês dois, sei não. Se perco o freio, aonde vamos parar? O freio é comigo, irmão. Gracinha! Manera, flu-flu!

O vai-e-vem incomoda. E tá por demais nervoso. Há pouco estava tão alegre. Efeito do trânsito, que piora a cada dia? As solas dos pés esquentam, coladas à borracha dos pedais. No assoalho, os dois irmãos, amontoados um sobre o outro, entreolham-se. O que houve? Provavelmente, coisas do coração.

Nem calçada de rua nem chão de loja. Os pés afundam-se na areia. Ao menos não ficaram para trás, esquecidos no carro. Seguem juntos, pendurados nos dedos. Trocam olhares, aspirando, entre alegres e espantados, o ar que recende a peixe descongelado. Não faz mal. O ambiente marinho tem dessas coisas.

De bruços, lado a lado, ora contemplam o mar, ora observam os olhos escuros. Absorta, mira no horizonte imagem invisível para eles. Visíveis mesmo só as pequenas manchas na blusa azul, que se alargam na mesma velocidade em que as pálpebras se abrem e fecham, expelindo os sais que a saudade traz.

William Costa: jornalista de carreira e escritor paraibano, editor do suplemento cultural Correio das Artes, cronista do jornal A União, tem vasta experiência em veículos de imprensa e é autor do livro de crônicas e contos Para tocar tuas mãos - Chronesis.

E-mail: wpcosta.2007@gmail.com