Continuando a abordagem do universo armorial, nota-se que a literatura de Ariano Suassuna, em particular, é marcada por forte influência da cultura popular, de poetas como Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde, Francisco das Chagas Batista, entre outros. Como William Shakespeare, em “Otelo”, “Macbeth” ou “Romeu e Julieta”, Ariano, ao criar suas peças, valia-se de histórias que, de alguma forma, já existiram, baseadas na tradição oral e/ou escrita. Além disso, assim como o bardo inglês, que absorvera o peso das obras de Thomas Kyd ou de Christopher Marlowe, por exemplo, Ariano buscou beber nas fontes do teatro clássico europeu do chamado “Século de Ouro”, como em Lope de Vega e Calderón de la Barca.

Escritores espanhóis barrocos, entre eles poetas, também o influenciaram de forma decisiva: Luís de Góngora, Miguel de Cervantes e Francisco de Quevedo. Como assevera sabiamente Bráulio Tavares (primeira foto abaixo), em seu soberbo ensaio “Tradição popular e recriação no Auto da Compadecida”: “Histórias, cenas e versos são sempre os mesmos, por força da Tradição, mas são sempre outros, por força da visão pessoal de cada artista.”

O pensamento tradicionalista de Ariano, ligado a concepções católicas, abarca uma visão humanista do mundo e da sociedade, bem como um espírito nacionalista, de afirmação cultural de nossa identidade. Em que pese a absorção da tradição ibérica, seu teatro é profundamente enraizado na cultura do povo nordestino. Ademais, nele encontramos elementos característicos das artes populares: o circo, o teatro de rua, a literatura de cordel, a poesia popular, o romanceiro das línguas latinas, as baladas de língua inglesa, a “commedia dell’arte” italiana e, até mesmo, o teatro de “vaudeville”, o cinema mudo norte-americano, a mímica etc.

Sobre o personagem que é o fio condutor da mais famosa peça de Ariano, Bráulio arremata: “João Grilo é claramente uma nova encarnação de Pedro Malazarte, talvez o nosso herói espertalhão mais conhecido, e que na Península Ibérica tinha o nome de Pedro Urdemalas. Outro antepassado ilustre seu é Lazarillo de Tormes, o guia de cego que luta para sobreviver no meio da miséria e da violência, sendo forçado a tornar-se sagaz, trapaceiro e por vezes cruel. Também se relaciona com personagens da ‘commedia dell’arte’ europeia, como o Arlequim: espertalhão, cheio de espírito lúdico.”

A estética armorial perdura na produção literária atual: não é à toa que, em breve, a Editora Penalux irá lançar o “rimance” “A Engenhosa Tragédia de Dulcinéia e Trancoso”, produção mais recente de um dos mais inventivos e intertextuais autores das últimas décadas: W. J. Solha (segunda foto abaixo). Essa obra ímpar, uma espécie de novela de cavalaria pós-moderna, utilizando um jogo muito bem urdido de metalinguagem, nos envolve em um tecido que é um amálgama de elementos, estilos, referências e mitos, todos eles muito bem amarrados pela dicção já consagrada do citado escritor, dramaturgo, ator e artista plástico, que é guiado, em sua construção verbal, pela figura onipresente de Ariano. A concepção deste livro foi baseada no libreto que o próprio W. J. Solha escreveu para a peça musical homônima de seu “rimance”, considerada a primeira ópera armorial, do maestro Eli-Eri Moura (terceira foto abaixo), do Departamento de Música da UFPB, cuja montagem foi realizada, no ano passado, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Dentro do contexto armorial, são também importantes os espetáculos populares do Nordeste, encenados ao ar livre, com personagens míticos, cantos, roupagens principescas feitas a partir de farrapos, músicas, animais misteriosos como o boi e o cavalo-marinho do bumba-meu-boi. O mamulengo ou teatro de bonecos nordestino também é uma fonte de inspiração para o movimento, que procura, além da dramaturgia tradicional, um modo brasileiro de encenação e representação.

Sem dúvida, a estética armorial foi um movimento polêmico, de concepção nacionalista, sendo um contraponto, por exemplo, ao Tropicalismo, que tinha como uma de suas inspirações a música pop internacional, mormente a norte-americana, para a qual Ariano e seus seguidores sempre torceram o nariz. Foi, contudo, a primeira vez em que vozes de forte alcance cultural empunharam uma bandeira de resistência, em defesa de uma arte genuinamente popular e brasileira, com uma roupagem erudita. Foi uma busca sem precedentes de nossas raízes mais profundas, de nossa mais autêntica identidade. Original em absoluto. Vida longa – de preferência, eterna – à arte de Ariano e de seus discípulos.

Thiago Andrade Macedo: escritor infiltrado no serviço público federal, advogado não militante, autor do romance policial, psicológico e filosófico O Silêncio das Sombras, também atuou como articulista do jornal A União; filho de pernambucanos nascido nas Minas Gerais, atualmente é um ex-nômade radicado em João Pessoa, Paraíba.

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