A cultura popular nordestina também é clássica, por que não? Explico: o Nordeste já foi cantado com roupagem de música erudita, em uma das mais belas e fabulosas concepções de arte popular de que se tem notícia, desembocando em sua representação mais genuína até hoje concebida, o Quinteto Armorial, sob a égide ideológica do mestre Ariano Suassuna, pai do Movimento Armorial.

O desenvolvimento da sonoridade, contudo, passou por outro grupo musical. No início do experimento, Ariano uniu-se aos músicos Jarbas Maciel, Clóvis Pereira e Cussy de Almeida (foto abaixo), alunos do maestro Guerra-Peixe, ligado à vanguarda dodecafônica. Juntos, criaram a Orquestra Armorial de Câmara (ouça um de seus discos fundamentais abaixo), um conjunto que buscava cultuar e amplificar, com acento erudito, o som de instrumentos nordestinos. Regida por Cussy de Almeida, a orquestra ficou vinculada ao Conservatório Pernambucano.

O caminho percorrido pela música armorial foi o inverso do que normalmente é o itinerário dos movimentos culturais em nosso país: partiu de uma região fora do eixo Rio-São Paulo, indo lá desaguar depois, o que atesta a qualidade expressiva da estética envolvida no projeto, que aplacou a dependência dos grandes centros que ditam os ventos culturais no Brasil. E isso no início dos anos setenta, época em que jamais se imaginava a força da grande mídia e do advento da internet, hoje poderosos instrumentos de divulgação da produção artística dos mais distantes rincões do país e do mundo, através das mais variadas formas de interatividade e compartilhamento de informações. 

A Orquestra Armorial de Câmara estreou em 18 de outubro de 1970, na igreja de São Pedro dos Clérigos em Recife, de igual forma a data do lançamento oficial do movimento. O violino e a viola transmutavam-se na sonoridade da rabeca. A banda de pífano era recriada pela flauta e pela percussão. O cravo era a versão erudita da viola, ambos de cordas pinçadas e de aço. Os movimentos da música erudita também serviam de base para a armorial: na erudita os movimentos são Allegro, Adagio e Presto; na armorial é Chamada, Aboio e Galope.

A orquestra gravou cinco discos e excursionou pelo país, com Ariano Suassuna fazendo explanações sobre o movimento nos respectivos eventos. Uma das apresentações mais memoráveis foi na Sala Cecília Meireles, no Rio. Era a fusão do passado com o presente da cultura nordestina, marcada pela pretensão de renovar a música brasileira. A espinha dorsal do repertório era formada por composições de Jarbas Maciel e Clóvis Pereira.

No contexto da estética armorial, importância basilar é dada à chamada literatura de cordel, por encarnar o verdadeiro espírito do povo brasileiro e abranger três formas de arte: a narrativa, presente em sua poesia; a xilogravura, que ilustra suas capas; e, por fim, a música, através do canto de seus versos, acompanhado por viola ou rabeca.

Na concepção musical do movimento, a Orquestra Armorial de Câmara, portanto, foi o pontapé inicial para a busca de um som nordestino fidedigno, porém com matizes eruditos. Não demorou muito, entretanto, para Ariano romper com Cussy de Almeida, um dos líderes do projeto. O escritor queria instrumentos populares na orquestra, visando depurar a sua sonoridade, ao passo que Cussy não julgava que isso fosse essencial. Pregava que a utilização dos instrumentos eruditos dava mais uniformidade sonora à música.

Ariano queria ir mais além, bateu o pé e nunca mais a exegese de nossa civilização musical foi a mesma. A idiossincrasia de Ariano, na abordagem do substrato cultural nordestino, é uma das mais poderosas ferramentas de resistência artística de nosso povo. A sua semente foi plantada, germinou e criou raízes profundas no solo de nossas manifestações culturais, de nosso modo de ser e de nossa busca por uma identidade nacional. O próximo passo seria dado. Começava a gestação de um novo projeto mais sólido e robusto, o Quinteto Armorial, tema de nosso próximo artigo.

Thiago Andrade Macedo: escritor infiltrado no serviço público federal, advogado não militante, autor do romance policial, psicológico e filosófico O Silêncio das Sombras, também atuou como articulista do jornal A União; filho de pernambucanos nascido nas Minas Gerais, atualmente é um ex-nômade radicado em João Pessoa, Paraíba.

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