O de Michelangelo (ao centro da foto acima, criado entre 1501 e 1504) é, de longe, o mais belo. O de Bernini (o do lado direito, de 1623 e 1624) é, disparado, o mais expressivo. Os dois, de mármore. Mas o bronze de Donatello, criado por volta de 1440 (lado esquerdo da foto), tem a contrastante juventude – ainda imprópria para a guerra – que ofende o filisteu enorme. E em I Samuel 17:42, há uma descrição preciosa:

– E, olhando o filisteu, e vendo a Davi, o desprezou, porquanto era moço, ruivo, e de gentil aspecto.

É assim o de Donatello, como se vê nas fotos. Foi a primeira escultura em bronze do Renascimento, o primeiro nu, desde a antiguidade.

Com essa imagem na mente, escrevi o conto publicado em 2005 pela Bertrand Brasil em minha HISTÓRIA UNIVERSAL DA ANGÚSTIA, finalista do Jabuti em 2006, Prêmio Graciliano Ramos, da UBE – Rio do mesmo ano.

Eis o trecho do conto com a situação que leva ao célebre combate:

– Assim, mais sombrio do que nunca, o rei Saul acampou com suas tropas no monte em frente ao Vale do Carvalho, vendo o inimigo do outro lado. Seus carros e os dos adversários já se preparavam para o confronto, tudo dentro das rotinas de guerra, quando o imprevisível apareceu: na tarde dourada, sobre uma rocha cor de ferrugem, à frente do exército estrangeiro, surgiu um guerreiro gigantesco chamado Golias de Get, desafiando um campeão dos judeus para um recontro singular.
– Gigantesco.
– Bom, no Livro Sagrado consta que o sujeito tinha seis côvados e um palmo de altura. Não sei. Não medi. Mas ele era, realmente, duas vezes o tamanho de um homem alto como Saul. Confesso que estremeci ao vê-lo. Pense nisso acrescido de um capacete de bronze e uma couraça de cinco mil siclos, grevas também de bronze nos pés, o estupendo escudo, a lança enorme. Tinha um aspecto tremendo! O carvalho – que era uma árvore de enorme idade, vigorosa anciã – pareceu…diminuir…quando ele apareceu junto dele.
– Incrível!
– Golias parou e largou o vozeirão na provocação desmoralizante: “Não sou eu filisteu e vós servos de Saul? Para que saireis a ordenar batalha, se basta escolher dentre vós um homem que desça a mim? Se ele me ferir, seremos vossos servos, se eu o ferir, sereis nossos”. A humilhação golpeou o rei em cheio. Primeiro, por se aperceber sem a menor condição de – ele mesmo – responder ao repto. Nem a título de autoimolação, o que lhe pareceu um contrassenso, pois o suicídio há muito rondava as partes mais sinistras de seus pensamentos. E viu que ninguém, nas suas tropas, erguera a voz, levantara o braço aceitando o … sacrifício.
– E aí?
– Ele ofereceu um prêmio a quem revidasse ao inimigo, incluindo nesse incentivo sua filha Micol em casamento… mesmo sabendo-a doida por Davi, ou talvez por isso mesmo.
– E Davi, onde estava?
– Por conta da guerra, que arrastara para o Vale do Carvalho todos os adultos de Israel, inclusive seus irmãos, ele voltara ao campo belemita a fim de cuidar do rebanho do pai. Aconteceu que um dia Jessé mandou-o levar grãos tostados e pães aos manos mobilizados e ele chegou ao cenário da esperada batalha no exato momento em que Golias reiterava a proposta . Em pé sobre os estribos do cavalo nervoso, o jovem assistiu a isso e ao chocante silêncio que se seguiu nas forças judias. Sem a menor consideração ao tamanho do desafiante, perguntou ao irmão Eliab: “Quem é esse incircunciso para afrontar os exércitos do Deus vivo?” A mente de todo gênio… ou louco – não era a primeira vez que eu observava isso – opera de maneira diversa da dos comuns mortais. Ela… simplifica todos os problemas. Se não, vejamos. Davi acabara de ser ungido o próximo rei por Samuel – indicação direta de Jeová ( e a respeito disso ele não tinha a menor dúvida ) . Ao contrário de Saul, contemporizador com os inimigos, ele considerava, de fato, os judeus como o Povo Eleito, e – por conta disso – daria ordens terríveis, no futuro, como contra os moradores de todas as cidades dos amonitas, a começar por Rabat, sobre os quais mandaria que passassem carroças ferradas, e que os fizessem em pedaços com cutelos, e os botassem nos fornos de cozer tijolos.
– O poeta fez isso?!!!
– O poeta fez isso. E, no terreno pessoal, sacanagens como a de enviar o general Urias para a frente de batalha… a fim de poder comer Betsabé, a mulher dele, que – para seu enorme desassossego – flagrara tomando banho nua.
– Pelo amor de deus!
– Quer dizer: Davi era – desde muito jovem – consciente, evidentemente, de todas as suas qualidades superlativas, extremamente seguro de si, de seu povo… e de seu deus. Nada o afetava muito ( a não ser como poeta ), sequer a situação desfavorável na família ( desde que fora ungido rei “em tempo de espera” por Samuel ). Sequer o constrangia o fato perante Saul, em cuja tenda penetrou, comunicando-lhe decidido:
– “Eu irei pelejar contra esse filisteu!”
Saul e o general Abner entreolharam-se, o militar sorriu, o Rei pôs a mão no ombro direito do cantorzinho:
– “Que que é isso! Você não é um guerreiro, é o meu querido harpista, criança…”
– “Criança? – Davi disse-lhe a sério – Por que acha, Majestade, que meus irmãos já me odiavam antes que o profeta passasse lá em casa, se não porque já matei um leão e um urso em defesa de minhas ovelhas, pelo que meu pai passou a confiar mais em mim do que neles, deixando o grosso de nosso rebanho sob minha guarda?”
– “Um leão e um urso? Como?”
Ele não respondeu.
– “Se estou – disse – , segundo Samuel, destinado pelo Senhor Deus a ser rei em teu lugar, nada poderá me destruir até que eu seja coroado, estou certo? Portanto… se me disponho a enfrentar Golias num combate de vida ou morte, estou fadado a vencer o monstro, claro!”
– Em toda loucura há uma coerência interna. Mas Saul, fora dela, sabendo que Samuel não profetizava coisa alguma, ouviu o General Abner aconselhá-lo, em voz muito baixa, que confiasse em Davi. “Se for vencido, poderemos dizer com menosprezo àquela coisa pavorosa lá fora que ela derrotou um garoto. Quanto a Samuel, estará desmoralizado e vós… solidificado no trono…” Saul fez um esgar de dor.
– Eu imagino que a decisão não era simples.
– Perderia aquela voz que lhe tirava as palavras mais dolorosas da alma… e as apascentava até o sono… Mas havia a macerar-lhe o estômago aquela maldita paixão… retribuída… do filho Jônatas… Disse: “Está bem. Vá enfrentá-lo… e que o Senhor esteja contigo. Tragam-lhe couraça, capacete, escudo, grevas e espada!” Mal, porém, Davi – todo blindado – deu alguns passos na tenda e fez alguns gestos desengonçados, compreendeu a falta de praticidade daquelas trevas e luzes, resplendores, crepúsculos e alvoradas, tudo muito pesado, começou a se despir: “Ei, o que é que você está fazendo?” E ele: “Pelo amor de Deus, não posso sequer andar com essa tralha”. Assim, foi completamente nu que saiu a campo.
– Eu não acredito!
– O General Abner e Saul também não: ficaram boquiabertos.
– Imagine a repercussão nas tropas!
– Se o nome do combatente que se oferecera ao rei já provocara escândalo entre elas, o de sua aparição sem absolutamente nada no corpo – sequer armas…além de uma funda – foi ainda maior, causando reações de todo tipo, colina abaixo, com bate-bocas, troca de tapas entre os soldados, fúria entre os irmãos do vaidoso incorrigível que chegava àquele ponto! Ao vê-lo passar, Jônatas – que correra até o cordão de isolamento na encosta ao tomar conhecimento do que estava havendo – sentiu a cor aflorar, quente e intensa, de dentro do rosto e da cabeça para a pele da face.
– “Davi!!!…”
– A paixão por ele deve ter ido às alturas!…
– Como a de Saul … Aí Davi se baixou no riacho ao fundo do vale e tirou um seixo de dentro d’água – o Livro Sagrado diz que foram cinco, mas foi apenas um, pois não haveria tempo para outro. Golias ainda não o tinha visto. Somente no momento em que o jovem se reergueu, o gigante – chamado às pressas – o viu, em meio a uma onda de espanto que transbordara das tropas israelitas e se espalhava entre as filisteias. Quem, finalmente, aceitara o desafio? Ninguém mais do que um harpista adolescente e delicado, com pele muito clara e cabelos cor de cobre! O desafiante ficou furioso: “Sou algum cão pra ser escorraçado a pedradas por um guri pelado?” Mas Davi lhe gritou, caminhando com os pés descalços na água limpa, em sua direção: “Cala a boca, criatura insignificante! Você vem a mim com espada e lança, couraça e escudo, eu venho a ti como nasci… mas em nome do Senhor dos Exércitos, a quem você afrontou!”
– Foi muita raça!
– Sim, e lhe disse tudo que viria a seguir: “Você me será entregue agora por Jeová e eu o ferirei e lhe tirarei a cabeça do corpo, que darei às aves do céu e às bestas da terra… e todo mundo saberá que há Deus em Israel!!!”
– E o povo?
– Mudo! Mas o lado filisteu urrou quando o gigante largou a correr berrando de ódio, colina abaixo, sacando a espada no que deixava escudo e lança tombarem pelo caminho, por desnecessários. Davi, calmamente, meticulosamente, sempre andando devagar, já pisando nas barrancas na segunda margem do córrego, envolveu o calhau roliço no fundo da funda, prendeu as extremidades das duas tiras no polegar e indicador da direita, ergueu a mão e, com energia, fez a pedra girar zunindo acima da cabeça – vu vu vu vu – de olho na confluência das sobrancelhas de Golias que se aproximava à toda – vu vu vu – e, subitamente – fiux! – disparou! Crouf! Golias sentiu o impacto entre os olhos, atônito, no que o chão lhe sumiu sob os pés e o exército filisteu viu, horrorizado, aquela enorme carcaça descompor a carreira, oscilar, desabar na ribanceira, o exército judeu de olhos arregalados ante o milagre inaudito do Senhor Deus e de seu extraordinário instrumento humano – Davi! – depois do que houve o espetáculo do enorme clamor de aleluia – Hosana! Hosana! – enquanto o rapaz, com a frieza de um veterano, avançou firme até o enorme agonizante, cuja mão direita, parada no ar, diante do rosto, fazia menção de querer desencravar – não sabia como – a dor lancinante encalacrada no cérebro ou no centro de seu eu. Saul, o General Abner, Jônatas, os irmãos de Davi, o exército judeu, a poderosa tropa filisteia , todos viram o pastor, o delicado harpista rodear o corpanzil inquieto, rumo à enorme espada abandonada entre poças e moitas, parar deixando cair a funda no chão, pegar com as duas mãos o punho da lâmina pesada, erguê-la com esforço quase que acima de sua capacidade,… e desabar-lhe o corte afiado na garganta do monstro, degolando-o de um golpe só.

W. J. Solha: romancista, poeta e ensaísta paulista radicado na Paraíba, é também dramaturgo, ator, artista plástico e publicitário, com vários livros publicados e premiados, transitando em várias frentes de nossa cultura; um artista "multimídia" por excelência.

E-mail: waldemarsolha@gmail.com