Não conheço outro autor que conseguisse dizer tão mal de uma cidade como Thomas Bernhard de Salzburgo, que condene tanto uma sociedade e que, ao mesmo tempo, fosse tão crítico e tão certeiro (o certeiro, aqui, é subjectivo) contra o catolicismo e a igreja católica na sua chamada AUTOBIOGRAFIA com 5 ensaios independentes a processar a infância, adolescência, juventude. No entanto, este livro azedo e fulminante, como um castigo para os que o castigaram, a lembrar as diatribes e vinganças dos velhos deuses, foi apoiado na sua edição portuguesa pelo Ministério da Educação, Arte e Cultura da Áustria e pela Embaixada da Áustria em Lisboa.

Será que ser má-língua resulta?, e um certo veneno destilado merece ser exibido na sua graça / desgraça? Bem, o valor de um escritor já não se mede pelos fortes ataques ao que viu, sentiu, conheceu, mas pelo valor intrínseco da obra, dos conceitos, das análises, frutos de mentes elaboradas e limpas. Todas as mentes superiores têm direito aos seus ataques desde que com isso se justifiquem e salvem, expliquem, e não cometam crimes contra os semelhantes, mas alijem esses crimes de si próprios. Ei-lo: escrita alucinante, fervente, despejada sem parágrafos, como que a pretender redigir livro mais vida do que escrita ou a escrita possível e necessária, para, na sua simplicidade e justeza das palavras, verter a vida em mistela literária bebível, sem humor negro, mas vida sacrificada no humor que não se sacrifica nem imola, mas transpira e transporta para fora a resistência, a ultrapassagem, o não acabar, a não vitória da morte, para já! Remexer em feridas e escrever isto, passados tantos anos, devia ser doloroso, mas preciso era para redimir, absolver (acabar) o passado, encontrar o prémio de se estar (e merecer estar).

Histórias inteiras de dor, desajustamento, no liceu, no procurar o ajustamento como aprendiz no comércio, no contacto com gente pobre, na casa de repouso dos mortos, no sanatório dos mortos, onde se era despejado para morrer, onde a esperança fugia e a luta, inconsciente, persistia. A tuberculose na sua essência radical. E, no meio dos desgostos, desastres, tendo atravessado o nacional-socialismo do Hitler trocado por um catolicismo não aceite, enjoativo, T. H. encontra na escrita um refúgio. O mundo e as contrariedades abusavam dele e ele escreve: “abusei do mundo inteiro transformando-o em poesias.” Um calvário intenso e, a simplicidade dos factos, alicia-se à simplicidade das palavras, não há exploração literária, há vida a gotejar nas palavras banais, caídas numa banalidade cheia, crepitante, onde tudo fica por dizer e o que se diz é o bastante.

António da Silva Neves: português, natural de Trancoso, sua obra abrange a crônica, a poesia e o ensaio, com destaque para os livros Contos Peninsulares Manuel Alves, o Poeta da Bairrada, além de sua colaboração em vários jornais e revistas portugueses, entre os quais Horizonte, Mensagem, Brasil, O Castelo, O Jornal da Província, Semanário da Região Bairradina, entre outros.

E-mail: antonio.silva.neves.trancoso@gmail.com