Por que parei de representar, no final de 2010, depois de participar de dois longas pernambucanos e de dois curtas paraibanos, périplo de que destaco – pelo inimaginável sucesso – O Som ao Redor? Volto ao tema, tão caro pra mim, quanto complexo.

Ostensivamente: na conhecida escalada que se cumpre de sete em sete anos, eu chegara, ali, aos setenta redondos, e sentira , enfim, o que é a velhice. 
Geriatra de nada me valendo, decidi, apesar de quase trinta convites pra filmes, minisséries na Bahia e no Uruguai, novela da Globo– parar com o nomadismo do trabalho de ator, porque o sedentário empenho literário me era particularmente mais vital . 

Decisão esquisita. Imagine que depois de participar de um comercial de restaurante, na TV, no final dos anos 80, eu conversava com Ubiratan de Assis na Duque de Caxias e tantas vezes fui parabenizado por passantes, que ele me disse: “O que você não conseguiu com 30 anos de literatura, conseguiu com 30 segundos de TV”. 

Claro. O Ivo Barroso – grande poeta e tradutor – me disse, lá do Rio, em 2012: “Caramba, tenho um amigo na primeira página do The New York Times de hoje!” ( https://www.nytimes.com/…/kleber-mendonca-filho-directs-nei… ) Era a foto que ilustra este texto, de uma cena do “Neighbouring Sounds” – “O Som ao Redor” – filme que o jornal colocara entre os dez melhores do mundo, daquele ano.

Representar é mais fácil do que escrever? Não. Anos atrás, ao dar uma palestra pra psicanalistas do “Espaço do Ser”, João Pessoa, pareceu-me que os surpreendi quando lhes assegurei que – depois de um trabalho intenso em cima de seu personagem – com o ator ocorre o mesmo que a um médium num centro espírita, a um pai de santo num terreiro:

– Ele recebe “o espírito desse Outro”. E o fenômeno é tão fantástico – garanti – que o corpo ACREDITA na cena que você interpreta. Não há como enrubescer, chorar ou empalidecer, se não for assim. 

Quando revejo “A Canga” do Marcus Vilar, parece-me surreal não ver na tela os quarenta técnicos que se esfalfavam em torno de Zezita Matos, do Everaldo Pontes, de Servílio de Holanda, da Verônica Cavalcanti e de mim, durante as filmagens. Nós – entre cada grito de “Ação!” e “Corta!”- estávamos absolutamente sós com nossa tragédia, na vasta caatinga. O mesmo se deu quando eu e Hermila fizemos pai e filha em “Era uma vez eu, Verônica”, do Marcelo Gomes, num apartamento modesto da Conselheiro Aguiar, Boa Viagem. Tudo e todos existiam até que a assistente de direção ligava pro guarda de trânsito e a avenida parava. Aí ouvíamos “Ação!” – e ficávamos sozinhos, numa cena – por exemplo – em que eu polia um LP e ouvia a filha cantar o melancólico “Frevo da Saudade”, do velho Nelson Ferreira. 

Atores são seres à parte. Chovia, na quinta-feira santa de 2003, quando, no “Auto de Deus”, apresentado ao ar livre diante do Theatro Santa Roza, João Pessoa, eu, Pilatos, vi de meu trono, lá em cima, o Horiébir – no papel de Cristo – ser atirado ao chão por dois legionários romanos que o haviam flagelado. Desci os dezesseis degraus da escadaria pisando no tapete vermelho encharcado e gritei, sob o aguaceiro: “Vós sois o rei dos judeus?”, e me impressionei, ao me aproximar do condenado, ao vê-lo se levantar com dificuldade, de costas para mim, as carnes de suas espáduas (que o público não via!) … tremendo, em estado de choque pelo flagelo de que ele “acabava de ser vítima”!” 

Quando ensaiávamos meu texto “O Vermelho e o Branco”, em Pombal, sertão paraibano, 1968, Ariosvaldo Coqueijo – que, além de dirigir o espetáculo contracenava comigo – jamais conseguia dizer seu monólogo inicial por inteiro, nos ensaios, pois chorava desesperadamente antes do parágrafo final. Na leitura de mesa de “Antígona”, uma adaptação minha do clássico de Sófocles, Emilson Formiga, que iria fazer o papel de um arcebispo, não “entrava” em seu personagem até que o fiz repetir o texto umas quinze vezes, sempre corrigindo o rumo de sua emoção. Aí, de repente, arrepiei-me sentindo que o “espírito” do sacerdote “baixara nele” e, extasiado, vi Emilson escalando a enorme montanha de sua dor, até que… deu um berro levantando-se, saiu correndo, chorando, e trancou-se num dos banheiros, insultando-me com palavrões. 

Tivemos Servílio de Holanda ( meu filho doido no curta “A Canga” ) fazendo um cachorro, no “Vau da Sarapalha”. Seu diretor – Luiz Carlos Vasconcelos – dizendo-me que eles foram várias vezes ao mercado municipal, analisar o comportamento de um vira-lata que havia lá, até que Servílio o assumira completamente. Por isso foi aplaudido de pé no Barbican Pit Theatre, de Londres! 

Quando terminamos – em “A Canga” – o take em que percebo que meu filho pode me matar, e rezo a oração do corpo fechado, sou amparado pelo diretor Marcus Vilar e por Walter Carvalho, encarregado da fotografia, pois tenho um começo de desmaio. Fui socorrido por Dira Paes e Rosemberg Cariry, atriz e diretor de “Lua Cambará”, numa sequência em que, mesmo num desempenho horrível, quase ia morrendo com o velho personagem agonizante. Quando fui fuzilado (numa cena que sequer foi aproveitada) em “Eu sou o Servo”, de Eliézer Rolim, tive uma crise de choro na frente de todo mundo – coisa de meu personagem, pois não sou desse tipo de coisa.

Kleber, ao receber meus cumprimentos pela recente vitória em Cannes, convidou-me: “Vamos mais?” Respondi-lhe que – se o aceno se mantiver até 2021, porque dificilmente ele se livrará do Bacurau até lá, e se eu, completados oitenta, ainda estiver inteiro – aceitarei, sim, viver o personagem que ele quiser. Mas sei que não será fácil.

W. J. Solha: romancista, poeta e ensaísta paulista radicado na Paraíba, é também dramaturgo, ator, artista plástico e publicitário, com vários livros publicados e premiados, transitando em várias frentes de nossa cultura; um artista "multimídia" por excelência.

E-mail: waldemarsolha@gmail.com