Não gosto de futebol (ou, melhor, pensava que não gostava de futebol). Achava que o meu tempo era precioso demais para gastar com futebóis. Dizia que o meu sofrimento era precioso demais para gastar com o meu clube (que também tenho, vermelho, vermelhão do coração) ou com a selecção nacional. Mas, sendo bem jogado, até me apanho a ver e a apreciar.

Ali, é tudo directo, rápido, sem sofismas nem contemplações, vence o melhor ou o mais hábil, não há paninhos quentes, não há cunhas ou proteccionismos. Quem tem unhas é que toca guitarra, quem tem pernas é que chuta na bola. Mas o futebol, bem jogado, não é apenas uma arte de pernas, é, também, um lampejo de inteligência, rápido, necessário, frustrado se não resulta: ou sim, ou não, não há meio termo. Há que resultar. O resultado é o golo (que, claro, não resolve os problemas da nossa vida) e há toda uma epopeia que se celebra à volta de um golo.

O futebol terá muitos defeitos, mas hoje importam-me as virtudes. É uma catarse. Uma aliança. Uma projecção. Um saber correr, rematar. Um driblar, enganar, trocar, que a bola é nossa enquanto não pertence à baliza adversária (que, aí, sim, mais nossa é). Jovens saudáveis, mexidos, atléticos, instinto e velocidade, ou, agora, ou já não é, desinibem-se numa fúria santa, jogam de igual para igual, qual o mais forte e habilidoso, vamos despachar… para a frente é que é o caminho, que o defender também importa e há que evitar confusões. As cores se esmeram, se repartem, se dividem entre os bons e os maus ou os maus e os bons conforme o lado ou os adeptos ferrenhos, o céu ou inferno.

O futebol obrigou o mundo a evoluir, por ex., no campo do racismo e contra o racismo. Um jogador negro já não é igual a um jogador branco, pode ser melhor se melhor jogar. E entre rivais se têm feito irmãos. E mentalidades se abriram, cresceram.

Penso bem dos futebolistas, nada tenho contra, não lhes transfiro as minhas frustrações, inquietações, tristezas, para que eles, chutando na bola, me tirem isso tudo, me dêem a compensação que, em mim, não alcanço. Peço-lhes para darem bailinho com a bola, não que interfiram na minha vida, necessidades, afirmações. O futebol em nada me realiza, prejudica / avantaja. Estou fora. É espectáculo. É ver ser bonito, bem jogado. Não me salva, nem isso lhe exijo.

 

Obs.: Reprodução parcial de tela de Ivan Cruz ilustra o presente texto.

António da Silva Neves: português, natural de Trancoso, sua obra abrange a crônica, a poesia e o ensaio, com destaque para os livros Contos Peninsulares Manuel Alves, o Poeta da Bairrada, além de sua colaboração em vários jornais e revistas portugueses, entre os quais Horizonte, Mensagem, Brasil, O Castelo, O Jornal da Província, Semanário da Região Bairradina, entre outros.

E-mail: antonio.silva.neves.trancoso@gmail.com