Carlos Heitor Cony afirmou, numa antiga entrevista à revista Bravo, que o Brasil não tem, ainda, o equivalente ao que significam Dante para a Itália, Shakespeare para a Inglaterra, Goethe para a Alemanha e Camões para Portugal. Bráulio Tavares e Affonso Romano de Sant´Anna, com os quais troquei alguns e-mails sobre o assunto, não concordam. Eu, com todo o respeito que tenho por esses dois monstros da cultura brasileira, sim. Inclusive no poema longo “Trigal com Corvos” abro o espectro e digo que Aleijadinho deveria ter sido Miguelângelo, não o nosso Miguelângelo, Carlos Gomes deveria ter sido Verdi, não o nosso Verdi, Portinari deveria ter sido Picasso, não o nosso Picasso.

O que nos falta? Rodrigo Naves, em “A Forma Difícil” – falando sobre o que detecto em todos os nossos gêneros artísticos – diz:
– “Uma dificuldade de forma perpassa boa parte de nossa melhor arte contemporânea. A relutância em estruturar fortemente os trabalhos, e com isso entregá-los a uma convivência mais positiva e conflituada com o mundo, leva-a a um movimento íntimo e retraído, distante do caráter prospectivo de parcela considerável da arte moderna”. Denuncia nossa “timidez formal”.

Acho que ela fica patente quando nos lembramos de que não temos nada que rivalize com a “Rapsódia em Blue”, de Gershwin; “O Pensador”, de Rodin; “Guerra e Paz”, de Tolstoi; o “2001”, de Kubrick; “Folhas de Relva”, de Whitman; o “Hamlet”, de Shakespeare; o Eclesiastes, atribuído a Salomão; “A Evolução Criadora”, de Bergson; a “Ilíada”, de Homero; a “Eneida”, de Virgílio; a catedral da Sagrada Família, de Gaudí, e por aí vai.

Mas por que essa timidez? Ah, veja bem: parece-me que precisaríamos de uma era como a elisabetana, para produzir um Shakespeare; uma era como a de Péricles, para produzir um Aristóteles, um Sófocles e um Pártenon; precisaríamos do peso de uma cultura como a russa, para produzir um Tolstói e um Dostoiévsky, um Máximo Gorki e um Gógol, um Tchékov e um Turgueniev, sem falar em um Soljenitsin, em poetas como Pushkin, Maiakósvsy e Boris Pasternak, compositores como Tchaikówsky, Mussórgsky, Shostakóvsky, Prokofiev e Rachmaninof, além de cineastas como Vertov, Eisenstein e Tarkóvsky, donde concordo com a frase de Isaac Newton: “Se vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes”. Ombros em que subir!

De que mais precisaríamos? De uma História que não fosse – como tem sido – tão periférica, a ponto de sepultar – em termos universais – uma obra-prima isolada como “Os Sertões” do Euclides da Cunha, tornando esse vasto épico (absolutamente insular) muito menor – em termos de repercussão internacional – do que as aventuras extraconjugais de duas burguesas ociosas como Ana Kariênina e Madame Bovary.

Otto Maria Carpeaux dizia que todo grande artista vive na convergência dos acontecimentos, citando para isso o caso de Virgílio escrevendo na Roma do Imperador Augusto. De fato, estar na periferia é tão contundente para a arte, que Paris se encheu de artistas estrangeiros na época em que foi centro cultural do mundo. Para lá migraram os holandeses Van Gogh e Mondrian, os espanhóis Picasso, Dali, Lorca e Buñuel, os americanos Hemingway, Gertrude Stein e Henry Miller, os russos Kandinsky, Nijinski, Diaghilev e Chagall e muita gente mais. Se bastasse ir para lá, porém, Portinari, Cícero Dias, Di Cavalcanti e Ismael Neri seriam, hoje, nomes globalizados. Infelizmente, no entanto, Cícero Dias voltou da França com uma como que franquia de Chagall e os três outros com a de Picasso, impressionando a crítica e o mercado tupiniquins, mas não, obviamente, os europeus.

O que teria consagrado a tríade de muralistas mexicanos Orozco, Siqueiros e Rivera? A resposta é claríssima: ausência de “timidez formal” e a Revolução Mexicana, anterior à Russa, e tão marcante, que gerou um fortíssimo livro-reportagem de John Reed – “México Rebelde” – que colocou o país no centro das atenções mundiais, ainda mais que ambos – insurgência e obra – foram como que pontos de partida para o levante de Lênin e para um livro ainda mais poderoso do jornalista americano para contá-lo – “Os Dez Dias que Abalaram o Mundo”. Dessa ressonância diz bem a produção e sucesso do filme “Viva Zapata”, roteirizado por John Steinbeck, dirigido por Elia Kazan, interpretado por Marlon Branco.

Bem, mas como explicar o renome, também, do colombiano Gabriel García Márquez, dos argentinos Cortázar, Borges e Manuel Puig, do chileno Pablo Neruda, do peruano Vargas Llosa, do venezuelano Rómulo Gallegos, do paraguaio Augusto Roa Bastos, do nicaragüense Rubén Dario? Atribuo, novamente, tal prestígio à ausência da “timidez formal” (Guimarães Rosa foi genial, mas sem o “caráter prospectivo” da época: seguiu Joyce), e – aí é que está – ao peso da língua espanhola, imensamente maior que o da portuguesa, por carregar em sua trajetória personalidades como Cervantes, Lorca, Miguel de Unamuno, Calderón de La Barca, San Juan de la Cruz, Francisco de Quevedo, José Zorrilla, Juan Ramón Gimenez, Dámaso Alonso, Fernando Arrabal, Benito Pérez Galdós e Tirso de Molina, sem falar, evidentemente, da simbiose fantástica de que os espanhóis sempre se beneficiaram, com expoentes da pintura como Goya, Zurbarán, Velázquez, Ribera, Picasso, Dali, Miró e Juan Gris, cineastas como Buñuel, Carlos Saura e Pedro Almodóvar, todos devidamente conhecidos e reconhecidos por toda a Terra.

Lembro-me de que fiz contato, anos atrás, com o escritório da agente literária Carmen Balcels, sondando a possibilidade de deslanchar uma carreira internacional para meus romances, e ouvi, de quem me atendeu, que apenas três assuntos interessavam aos gringos naquele momento: Amazônia, Bahia e menores abandonados cariocas, “daí, por exemplo, o espaço aberto para ‘Galvez, o Imperador do Acre’, do Márcio de Souza.” Daí, quem sabe, também, acrescento eu, o prestígio do amazonense Milton Hatoum, dentro e fora do país. Já o mesmo Affonso Romano me diz que um editor alemão leu, anos atrás, seu belo “A grande fala”, “…mas queria publicar poemas camponeses brasileiros…” Isso me lembra Silvino Espínola trazendo-me de Paris um livro de segundo grau, em que era destaque a “Cantata pra Alagamar” – versos meus, música do maestro Kaplan – dizendo tratar-se de “obra de camponeses anônimos do Nordeste brasileiro”…

E o fenômeno Paulo Coelho? Bem, não estou falando de magia. Mas de “timidez formal” e “ falta de caráter prospectivo”.

W. J. Solha: romancista, poeta e ensaísta paulista radicado na Paraíba, é também dramaturgo, ator, artista plástico e publicitário, com vários livros publicados e premiados, transitando em várias frentes de nossa cultura; um artista "multimídia" por excelência.

E-mail: waldemarsolha@gmail.com