Gênero pouco valorizado em outros tempos, a biografia conquistou grande quantidade de leitores e se impôs no meio literário e livreiro. Inúmeras obras do gênero fizeram grande sucesso de vendas e leitores, lideradas pelas americanas, quase sempre volumosas e bem fundamentadas. No Brasil, muitas biografias se destacaram pela qualidade da exposição e pela fidelidade ao biografado.

O autor de biografias, por sua vez, tem que ser dotado de paciência sem limite para se entregar a longas e exaustivas buscas em livros, documentos, jornais velhos e outras fontes, além de realizar entrevistas e consultas para confirmar ou desmentir detalhes às vezes de pouca importância mas que se apresentam cercados de dúvidas. É por isso que se diz que o biógrafo é um benfeitor que ressuscita pessoas esquecidas e as traz de volta ao mundo dos leitores. Como autor de duas biografias, sei de experiência própria o quanto é árduo reconstituir uma vida, ainda mais num país pobre em arquivos organizados.

Dentre esses benfeitores está Manoel Onofre Jr., escritor que vem se destacando num Estado de vida literária ativa como poucos, o Rio Grande do Norte. Depois de intenso e incansável trabalho, ele dá a público o volume “Antonio de Souza – Polycarpo Feitosa” (Oito Editora – Natal – 2020), em que traz ao convívio dos leitores uma figura curiosa das letras e da política.  Solteirão convicto, o biografado teve uma vida ativa e movimentada ocupando variados cargos públicos, às vezes dando a impressão de um sobe e desce, até se fazer governador do Estado por dois mandatos sem jamais pedir um voto e sempre deixando claro que detestava política.  Depois de aposentado, mudou-se para o Recife, onde havia cursado a célebre Faculdade de Direito e onde faleceu, mas pedindo para ser sepultado em Natal. Homem excêntrico e de poucas falas, foi um governante exigente e incorruptível, não admitindo o menor descuido com a coisa pública. Esses aspectos de sua personalidade mereceram do autor um dos mais deliciosos capítulos do livro.

A par dessas atividades e sob o pseudônimo de Polycarpo Feitosa, o Dr. Souza, como era conhecido, cultivava a literatura e se entregava a um dos gêneros mais difíceis: o romance. Conservador empedernido, recusou-se a aceitar o modernismo e preferiu cultuar os clássicos de antanho e absorver sua influência. Seus romances são muito bem escritos e expõem com perfeição o meio sertanejo em que são ambientados, exibindo uma face documental. É curioso assinalar que eles contêm histórias de amor e paixão, embora nada indique que o solitário por opção tivesse algum dia amado. Além disso, um homem tão severo produz momentos de muito humor, o que sem dúvida constitui uma curiosidade. Entraria aí a velha teoria de que o escritor, no ato solitário de escrever, revela facetas que permanecem ocultas no dia a dia?

Com muito cuidado e revelando intensa cultura literária, o autor põe o biografado em pé, de corpo inteiro, e retratando ao fundo o meio em que ele viveu, agiu e reagiu. Não é apenas o relato de uma vida mas a reconstituição de sua passagem terrena. Os romances são examinados e a fortuna crítica é analisada, mostrando como as obras foram bem avaliadas, inclusive fora do Rio Grande do Norte, em que pese a personalidade do biografado, avesso a entrevistas e autopromoção.

Entre suas obras estão “Flor do Sertão”, romance, “Gizinha”, romance, “Encontros do Caminho”, contos, “Os Moluscos”, romance, “Jornal da Vida”, poemas, “Gente Arrancada”, romance, “Dois Recifes com Sessenta Anos no Meio”, memórias, “Quase romance . . . Quase Memória”, além de plaquetas contendo artigos, ensaios, discursos, conferências e trabalhos de cunho jurídico. Mas foi com o romance que ocupou um espaço importante na literatura de seu Estado, gênero em que foi pioneiro. Muitos críticos de renome nacional aplaudiram suas obras em artigos publicados na grande imprensa: Medeiros e Albuquerque, Agripino Grieco, João Ribeiro, Câmara Cascudo, Umberto Peregrino, Nilo Pereira e muitos outros. Em anexo o autor enriqueceu o livro com bilhetes do biografado, fotografias em que ele aprece sempre de branco, textos publicados na imprensa e uma pequena antologia. Trata-se, pois, de uma obra que faz justiça ao grande prosador que foi Polycarpo Feitora.

Dr. Souza nasceu em 1867 e faleceu em 1955.

Em ensaio publicado na Revista da Academia-Norte-Rio-Grandense de Letras (Número 62/2020) Manoel Onofre examina as relações de Polycarpo Feitosa com a referida Academia, à qual curiosamente não pertenceu.

Para encerrar, vamos à indagação que serviu de título: para que servem as biografias? Segundo disse alguém, elas servem para não deixar morrer os nossos mortos.

Enéas Athanázio: escritor e jurista catarinense, uma das maiores autoridades do país sobre cultura indígena, colunista da revista Blumenau em Cadernos e do jornal Página 3, é autor de mais de cinquenta livros, entre eles Meu chão, O perto e o longe e O pó da estrada.

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