Como incontáveis brasileiros, posso dizer que Érico Veríssimo (1905/1975) esteve comigo a vida inteira. Lendo seus livros, acompanhando as notícias a respeito dele, vibrando com suas histórias e personagens, nunca o perdi de vista e muito lamentei a sua partida. Nos meus tempos de criança, que já vão muito longe, escritor era um ser etéreo que só existia nas páginas impressas e nunca se mostrava. Vivia quase sempre em grandes cidades. Até que um dia uma família de gaúchos foi residir em nossa vizinhança e não tardei a fazer amizade com o menino recém-chegado. Andando pela rua, entretidos em nossas brincadeiras, ele afirmou que conhecia Érico Veríssimo de vista e cruzara muitas vezes com o escritor. Com seu tradicional boné rajado e óculos escuros, ele dava sua caminhada diária pelas ruas de Porto Alegre. Para mim, aquilo foi um choque: então o criador daquelas histórias e personagens existia em carne e osso e podia ser visto andando pela cidade! O menino gaúcho cresceu diante de meus olhos e passei a encará-lo como alguém privilegiado. Eu próprio, no entanto, jamais tive o prazer de cruzar com o mestre de “O Tempo e o Vento.”
Depois de longo tempo, para não perder o costume, voltei a ler “Érico Veríssimo – Vida e Obra”, de autoria do crítico gaúcho Antônio Hohlfeldt e publicado por Tchê Comunicações (P. Alegre – 1984). É um retrato muito bem pintado de um dos escritores mais lidos e famosos, embora nos dias atuais, como tudo neste país desmemoriado, esteja entrando em lamentável ostracismo. Homem do Século XX, nascido, vivido e falecido nele, Veríssimo sempre foi atualizado e vislumbrava as inovações trazidas pelo futuro. Viajante incansável, andou por ceca e meca e isso contribuiu para enriquecer sua obra, inclusive com saborosos livros reunindo crônicas de viagens.
Érico Veríssimo foi farmacêutico, bancário, tradutor, desenhista e um dos raros escritores brasileiros a sobreviver da literatura como Jorge Amado e mais alguns. Trabalhou e deu alma à antiga Editora Globo, de Porto Alegre, ao lado de Mário Quintana e do poeta blumenauense Martinho Bruning, segundo depoimento deste último. Para Veríssimo, escrever era uma profissão, ao contrário do que afirmava Oswald de Andrade.
Na biografia aqui referida, o autor compara Veríssimo a Pedro Malasartes, personagem popular importado da Península Ibérica e que estava sempre praticando criativas e surpreendentes malandragens, tal como o escritor faria na obra literária realizada em 43 anos de incessante produção através da sátira e da ironia. Relembra o escritor diante do espelho, num momento mágico em que se analisa e mede sua obra, concluindo com humildade que é muito perigoso um homem levar-se demasiadamente a sério. E ao ler essa passagem recordo com nitidez o trecho de “Solo de Clarineta” em que ele registrou tais impressões. Liberal, democrata, independente, Érico se dizia entre dois fogos – a direita e a esquerda. Mas jamais mudou de posição. Agnóstico em matéria de religião, foi um individualista criticado por suas posições. Não obstante, apoiou Paulo Brossard contra a ditadura em carta divulgada país a fora. No final das contas, depois de muito andar, pensar, escrever, tantas desgraças e aflições, ele concluía que o ser humano, queira ou não, é vítima de uma fatalidade, tanto na vida como nos romances. No fundo, porém, o homem e o escritor Érico Veríssimo ansiavam pelo retorno à casa paterna, ao lar. Guardei sempre a impressão, desde as leituras iniciais, de que ele nutria certo temor do retorno em virtude das atitudes do pai, Sebastião Veríssimo. Revelando incompreensão diante da atividade do filho escritor, afirmava que ele perdia tempo escrevendo sobre fatos que nunca aconteceram e pessoas que jamais existiram. Creio, porém, que o afastamento entre eles não chegou ao rompimento.
Fato curioso, revelado pelo biógrafo, é que Mary Pedrosa, viúva de Mário Pedrosa, na leitura do livro Finnegan’s Wake, de James Joyce, deparou com o personagem de nome Ericus Vericus. “Ela indaga então se Joyce não teria tido oportunidade de ler “Olhai os Lírios do Campo” logo após sua publicação. Diziam que Joyce era dado a aproveitar descobertas de leituras. É um pequeno mistério na vida literária do escritor de Cruz Alta. Outro incidente merece ser lembrado: ao publicar “México”, registro de suas andanças pelo país, o autor foi severamente criticado. Quem era ele para escrever sobre uma nação ampla e complexa que nem seus filhos nativos haviam ainda explicado? Como se vê, uma atitude miúda e de mente estreita.
A obra de Veríssimo é ampla e variada. Compõe-se de contos, crônicas, ensaios, relatos de viagens, memórias, literatura infanto-juvenil e, acima de tudo, de romances que, a meu ver, são o ponto alto de sua criação. “O Tempo e o Vento”, em três volumes, é uma obra monumental e seus personagens galvanizam os leitores. Rodrigo Cambará, tanto o avô como o neto, são inesquecíveis e permanecem indeléveis na memória de quem rastreou essas páginas inspiradas.
O falecimento de Érico Veríssimo, em 28 de novembro de 1975, obteve repercussão nacional. Eu residia em uma “biboca arredia de civilização”, como dizia Godofredo Rangel, dentre as diversas onde fui dar com os costados, mas acompanhei pelos jornais e revistas a tristeza que se espalhou, “O Cruzeiro” e “Manchete” deram destaque ao fato e o mesmo fizeram as emissoras de rádio. Naquele dia a cultura nacional se empobrecia e contribuiu para o incremento de tanta porcaria hoje editada.
Encerrando seu magnífico trabalho justiceiro e ressuscitador, o biógrafo Antônio Hohlfeld, cujo nome Érico julgava muito complicado, diz o seguinte: “Quando cheguei lá (no velório) eram centenas de pessoas que desfilavam ante o corpo. No dia seguinte, chovia, e o enterro foi mais triste que os demais enterros. O recato da dor, porém, foi aquele mesmo que Érico Veríssimo teria desejado. Érico morreu no dia 28 de novembro de 1975. O final de sua vida. Ou teria sido o contrário, o começo? “Pátria é a casa da gente”, afirmava Maneco Terra em “O Continente.” Érico Veríssimo chegara à pátria e à casa final. E sua obra, daí por diante, passaria, definitivamente, a falar por ele.” Palavras que não poderiam ser mais felizes.
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