O tempo histórico do Santo e do Padre, ambos António, é muito diferente do nosso tempo, há perspectivas diferentes, conhecimentos, em todos os campos, diferentes. Afecto, melhor, afeiçoado ao Santo e ao Padre, propunha-me ler tal sermão com olhar crítico e vivo, no género de encontrar incongruências, defeitos, destemperos para deitar abaixo no papel de iconoclasta ou de advogado do diabo.

Era já presunção a mais da minha parte, que o estender-me na prosa eloquente de Vieira era o bastante, saboreá-lo no seu ritmo e conforto de toalha que se estende ao sabor das brisas e das correntes, que do céu e da terra se juntam, era o bastante. Às vezes, a inteligência, para o ser, tem de se negar a si própria para ser todas as outras coisas… e muitas são que a inteligência não tem… nem Deus, nem os santos, nem os profetas… (e por isso se fez a fé).

O sermão do Padre em S. Luís do Maranhão, “três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino”, traz recados implícitos e explícitos, quer-se texto teológico e de valor moral, veste-se de erudição, cintila de inteligência (a inteligência de que atrás, por demais e negativamente o julgar, dispensei), e, se não ergue monumento literário, circunscreve-se a referência literária capaz de ser captada, aceite, entendida pelos que nunca leram Vieira.

Milagre e fenómeno se fundem. O milagre do Santo que, sentindo que os homens se negam a ouvi-lo, vai pregar aos peixes, e o fenómeno de quem transplanta isso para outro tempo e situação, se exercita a dizer, com a capa do Santo, o que de outro modo não se atreveria (ou, o atrever-se, não resultaria numa recusa liminar dos que o recusariam ouvir; e, no caso de ir pregar aos peixes, já não dava, outro o haveria feito…).

O Padre (candidato a Santo), olhando em volta, para os homens e natureza, para os mares e peixes, vai em busca do Santo, que terá entendido, para que os homens o entendam, e, a não entendê-lo, só por culpas graves, ignorância perniciosa. Salvava-se a missão, a tentativa, o alerta, a provocação, e que Deus, lá em cima, fosse testemunha. Deus que eternamente entra no conceito da Bondade. Lá clama o Padre: “Tomai o exemplo nas irmãs sardinhas. Por que cuidais que as multiplica o Criador em número tão inumerável? Porque são o sustento dos pobres…” O Padre não era de folias, mas se hoje regressasse a Lisboa para festejar os santos populares (com o seu António sempre metido) e experimentasse as sardinhas nos restaurantes típicos, o que iria pensar do Criador?

António da Silva Neves: português, natural de Trancoso, sua obra abrange a crônica, a poesia e o ensaio, com destaque para os livros Contos Peninsulares Manuel Alves, o Poeta da Bairrada, além de sua colaboração em vários jornais e revistas portugueses, entre os quais Horizonte, Mensagem, Brasil, O Castelo, O Jornal da Província, Semanário da Região Bairradina, entre outros.

E-mail: antonio.silva.neves.trancoso@gmail.com