Na poética de Serguilha, o mundo acontece de forma heterogénea e rebelde, de energias magnéticas e sistemas indescritíveis de sincronismo. As vozes geográficas fazem-se de participações pulsantes, de fractais, de coexistências. Somos contaminados pelas demências nómadas onde não existem pontos de partida nem chegada e se dá o devorar de línguas sempre por vir de outros povos transumantes. Afeções, delírios e misturas entre lutadores estéticos da natureza, teias de relações, choques atemporais como pujança da magnitude do lahar.
A existência é inacessível, sugerindo o conceito de númeno em Kant. Há um distúrbio de vontades aglutinadas e instabilidades em planos de probabilidades. Todos os elementos sofrem e são afetados por outros elementos, surgindo dinâmicas onde tudo ressurge e persiste. Nada é alcançável e tudo se transfigura. A existência acontece sem graduações, onde os estados intermediários proliferam e as vontades soltam-se numa infinidade de transumâncias. Circulam as transferências onde nada está fixo. Tudo está conectado com tudo, numa errância permanente, regenerações, metamorfoses e desequilíbrios. A vida e o transe se juntam no caos dançante do pensamento. A língua mãe tem outras línguas e psicopatias. Uma miscelânea de mundos alucinogénios onde se repetem transitoriedades numa tentativa de dar sentido à metamorfose do corpo, mantendo-se o mistério da proveniência das vontades, subsistindo apenas a vontade errática e viajante de metamorfoses sem pontos estáticos.
À contenda acerca do como relacionar polissemias dos espaços e as ligações da matéria, a relação faz-se através do espanto tal como na filosofia grega antiga, como se o saber nos viesse de um processo oriundo de um mecanismo de reminiscências, embora se admita que não existem respostas, mas sim processos dinâmicos. O poeta navega na assimilação de instabilidades numa postura de desprendimento da linguagem, escutando sons inaudíveis para o senso comum.
A palavra como projeção do indescritível, denuncia na relação língua-mundo, transmutações e desvios onde polissemias sucedem em transformações impessoais. A palavra seria uma forma de dar sentido à metamorfose dos corpos. A língua vibra numa avalanche pensada nos desvios onde se reinauguram vestígios acústicos, tragédias diabólicas numa mistura entre apolíneo e dionisíaco, fazendo-nos sair das normas em releituras clandestinas, incontroláveis e permutáveis transformando-se em lahars.
O poeta vigilante capta a incerteza, desmaterializando e desbravando as múltiplas significações dos espaços e matérias. Há uma sedução quando perscruta sobre superfícies aleatórias, em que a palavra serve para produzir olhares instáveis eliminadores de individualismos. Há um tempo fora do tempo do relógio, feito de tempestades e turbilhões onde se dão os registos anorgânicos em simultâneo com fecundações e sombras expressionistas de coexistências. No seu processo assimila instabilidades refletidas nas transmutações, onde tudo se devora e regurgita, infiltrando-se nas memórias ontológicas. Explorador de encadeamentos topográficos, não tem limites na sua imprevisibilidade surfista. Tenta traduzir os deslumbramentos onde não há verdade, absorvendo unicamente o ilimitado, a obscuridade e o terror, ficando o seu grito de espanto sem resposta.
O tuaregue cósmico magnético em mutação e desaparecimento, está dentro do tempo primordial, escrevendo múltiplos sentires, em jogos de troca, dentro da pluralidade de perspetivas oscilantes e mutações linguísticas de aprendizagem, de religações sem julgamentos. O excriptor acrobata deixa-se atravessar por outras vozes, sentindo o intangível, como experimentador mutante num caos criador. Capta o tempo puro enquanto se deixa atravessar por forças do incompleto, onde não há morte. A força que liga a natureza ao poeta traduz-se pela complexidade caótica híbrida que é aplicada à escrita de forma não emocional, sem classificações deterministas numa visão de mundos sem cronologias. Alcança os múltiplos mundos e as forças bárbaras, pressentindo a encadeação do processo do mundo de constrangimentos onde se movimenta a balbúrdia. Desliza no delírio dos encontros sem intencionalidade nem servidão, abrindo-se ao estar no mundo sem rosto, em que o eu, é anulado. Acontece entre as experimentações e a língua, alimentando-se da dúvida fractal num pensamento invertido captando assimetrias, arquiteturas labirínticas, explorando contrastes. Experimenta-se a si próprio, quando explode em questionamentos e encarnações de memória coletiva onde não se referenciam limites de morte e vida e as densidades do transe provocam transmigrações do pensamento.
O leitor experimenta a estética em vigília e contamina-se, pela corrente entre espiritualidade, ecologia e cosmovisão. Mergulha no incorpóreo atravessando matérias, não suportando, a racionalização do discernimento, incorporando forças incontroláveis e vivendo de oscilações expressivas. O escritor-leitor sai da língua ditatorial numa tentativa de desobstruir a vida de reclusão.
O fazer poético está em ligação com as forças da natureza, numa hermenêutica estrangeira, vive no improviso, das leituras alucinogénias, deixando um rasto do que é incognoscível, num permanecer anarquista de lógica contraditória em transe, distanciando-se de verdades consolidadas, e opiniões. Cria uma zona entre ficção, realidade e tempo puro, aberta a intensidades anteriores à escrita. A palavra torna-se convulsão repetitiva tormentosa de heteronomia, num mundo de infinitas probabilidades. O êxtase e o horror da poesia é deparar-se com uma realidade ininteligível. O poeta expande-se como incorporador de escrita, de esquemas existenciais sem consciência onde a língua, fundindo-se com psicopatias, religa a complexidade do tempo passado, presente e futuro entre os jogos do mundo.
Desde eras primitivas que cenas de petróglifos patenteiam frestas de passagem para outras dimensões em experiências de deslocação, num maneira diversa de concatenar os saberes da vida, experienciando a dinâmica primordial da Natureza surpreendente e absurda em que tudo sofre e se transforma. As questões de onde, como e quando, sofrem miscigenações envolvendo energias que ocupam um ambiente obscuro espaciotemporal com forasteiros donos de outros olhares. No entanto é numa tentativa de resposta ao “como”, que o poeta acontece e vibra, deixando-se deslizar numa avalanche indomável.
Luís Serguilha resvala sobre planos moventes onde transitam quereres heterónomos, habitando diferentes esferas, onde tudo se conecta e derrapa. O ser humano é circunscrito, uma vez que existem encalços que desconhece, embora de forma intuitiva a própria arte faz do corpo, um desbravador de diversidades, ávidas de vida e de infinitas correlações. O poeta em transe denuncia-se como inconsciente esgrimista de palavras, misturando-se com a ferocidade do texto.
Serguilha admite, na sua prosa gótica em linguagem corrida, que as questões levantadas são apenas magnetismos sem respostas. “Plantar rosas na barbárie” é uma obra que estimula o espírito e acrescenta à arte literária a possibilidade do humano, empreender no mundo das descobertas, um voo pleno de possibilidades intelectivas e intuitivas, como se a poesia, tivesse a possibilidade de ultrapassar a própria ciência, mesmo que conduza à jornada infinita de saber que não se sabe.
Ana Maria Oliveira: premiada escritora portuguesa nascida no Alto Alentejo, licenciada em Filosofia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Lisboa, possui livros de poesia publicados e participou de coletâneas de escritores lusos; mantém alguns sites onde divulga a sua escrita; ultimamente está ligada ao projeto “Filosofia para crianças”.
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