Vejo essa corrupção sem freios em que se tornou a administração pública brasileira, seguida de perto por um surto de assassinatos e assaltos jamais visto nas ruas… e penso que diria, se fosse contemporâneo de Goethe, que a nação – feito Fausto – vendeu a alma ao diabo. Lembra-se da famosa declaração de Lula?:
“- Eu duvido que neste país tenha alguém com a consciência mais tranquila do que a minha!”
Não é difícil, nesse contexto. Mas diz Hamlet que se fosse dado a cada um o que merece, ninguém escaparia da chibata, frase que lembra “Quem estiver sem pecado, atire a primeira pedra”. “- Eu mesmo – confessa o Príncipe da Dinamarca – considero-me mais ou menos honesto, mas poderia me acusar de tais coisas, que teria sido melhor se minha mãe não me tivesse dado à luz. Sou orgulhoso, vingativo, cheio de ambição, e disponho de maior número de delitos do que de pensamentos para vesti-los, imaginação para dar-lhes forma ou tempo para realizá-los. Para que rastejarem entre o céu e a terra tipos como eu?”
Isso ecoa Leonardo da Vinci, que clama:
“- Oh, Terra! Por que tardas em abrir-te e arrojar os seres humanos às profundas gretas de teus abismos e cavernas, em vez de seguir exibindo à vista do céu um monstro tão selvagem e impiedoso?”
Na primeira parte do Concerto Brandenburguês Número 3, Bach me parece – no apropriadamente chamado “Allegro Moderato” – às voltas com algo sombrio que ronda nossas alegrias, voltando, sempre, a um circular de sons que se tornam – a cada repetição – mais e mais… sinistros, fundos.
O ser humano. Doctor Jekyll, Mister Hyde. Já andei pensando em criar um personagem de histrórias em quadrinhos que aprofundaria o duplo Clark Kent/Super-Homem: Mr. Ego, um sujeito que às vezes é Super-Ego, às vezes Id. Quase Hyde.
Muitos gostam de outro trocadilho Freud/fraude. Prefiro dizer que sua teoria psicanalítica herda um modo de nos explicar bíblico, judeu como era. Para ele, o id seria a fonte da energia psíquica (libido). É formado pelas pulsões – instintos, impulsos orgânicos e desejos inconscientes, buscando o que produz prazer. Desconhece juízo, lógica, valores, ética ou moral. É exigente, impulsivo, cego, irracional, antissocial e egoísta.
O fato é que somos… animais. E a lei da selva é a do mais forte. Daí que Hobbes tentou botar ordem na casa com sua paixão pelo Estado. Também o tentou o Decálogo, pela troca de nossa lei pela divina, …humanamente calcada no Código de Hamurabi, que a teria recebido… do deus-sol, meta que teria tido um avanço quando se exaltou o amor ao próximo no sermão da montanha, calcado no que se lê nos Diálogos de Platão. E todos os gênios – imagino – foram Super-Egos tentando sublimar nossa espécie, com sua ciência e arte.
O nível a que se chegou em textos como o do Eclesiastes, o do Soneto 65 – de Shakespeare; o do Monólogo de uma Sombra – de Augusto dos Anjos; ou o do Outro Poema dos Dons, de Borges, me asseguram isso. O Mundo como Vontade e Representação – de Schopenhauer; A Poética de Aristóteles; A Riqueza das Nações, de Adam Smith; A Era dos Extremos, de Hobsbawm, idem. Também a impressionante escultura, que é a Vitória de Samotrácia, de autor desconhecido; o documentário Koyaanisqatsi – de Godfrey Reggio; ou os concertos para piano e orquestra, de Rachmaninoff; ou o sistema binário, a Teoria da Relatividade, a Sainte-Chapell, ibidem.
Mas… no filme “A Encruzilhada” (“Crossroad”, foto acima), de Walter Hill, conta-se – pra justificar o virtuosismo espetacular do guitarrista Robert Johnson – que ele teria feito o pacto com o demo na encruzilhada das rodovias 61 e 49, em Clarksdale, Mississippi. Também o compositor Adrian Leverkühn – personagem do romance “Doutor Fausto”, de Thomas Mann – , não hesita, durante uma alucinação, em fazer um trato com o Diabo, a fim de garantir tempo e energia suficientes para dar conta da importante obra que estava compondo. A coisa parece que bate muito na alma humana, pois a história do próprio Fausto já foi recontada por uma série de autores, entre os quais, Goethe, Fernando Pessoa, Marlowe, Lessing, Paul Valéry, além de compositores como Wagner, Berlioz, Schumann, Lizt e Gounod. Há, até, o lance de Riobaldo com o Capeta nas Veredas-mortas do “Grande Sertão: Veredas”, do Guimarães Rosa.
E o diabo nem sempre é ostensivo. No filme húngaro “Mefisto”, de István Szabó, Klaus Maria Brandauer faz o papel de um grande ator – Hendrik Hoefgen – que, célebre por sua interpretação do demônio no “Fausto”, deixa-se seduzir pela ascensão em sua carreira, oferecida pelo emergente nazismo.
E voltamos a Leonardo. Sua imagem sempre foi a de um santo. O close, no desenho em que se autorretratou já bastante velho, passa pra nós uma enorme amargura ante a vida. Um Super-Ego que sabe perfeitamente que também foi muito do Id. Ele é sempre associado a quadros sacros como “A Última Ceia”, “Anunciação”, “A Virgem das Rochas”, e “Sant´Ana, a Virgem e o Menino”, mas não era só esse tipo de trabalho sublime que oferecia aos poderosos, na sua ansiedade fáustica. O sábio escreve ao poderoso Lodoviko Sforza, conforme consta do Código Atlântico, folha 1082:
“- Sei como construir pontes, escadas de assalto (…) Sei como arruinar a mais dura rocha ou qualquer outra defesa (…) Conheço uma espécie de bombarda que pode lançar uma tempestade de pedras miúdas com grande dano ao inimigo, sei construir carros cobertos e seguros contra todos os ataques, os quais, penetrando nas linhas inimigas, carregados de peças de artilharia, desafiarão qualquer resistência; (…) sei fazer morteiros, máquinas de fogo, catapultas, balistas, trabucos e outros instrumentos de admirável eficácia, nunca usados até agora.”
Mas – pessimista a curto e a médio prazo – não vejo Star Wars no futuro distante. Sou tão otimista, nisso, quanto Teilhard de Chardin com o Ponto Õmega, que ele vê lá adiante, quando – segundo ele – a Terra estará finalmente hominizada.
W. J. Solha: romancista, poeta e ensaísta paulista radicado na Paraíba, é também dramaturgo, ator, artista plástico e publicitário, com vários livros publicados e premiados, transitando em várias frentes de nossa cultura; um artista "multimídia" por excelência.
E-mail: waldemarsolha@gmail.com