Para surpresa de muitos, Carlos Heitor Cony (1926/2018) deixou dois romances inéditos e que foram publicados pela Editora Nova Fronteira (Rio de Janeiro – 2022). O autor foi consagrado como um dos maiores cronistas brasileiros, ombreando com Rubem Braga, Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos e nesse gênero granjeou uma legião de leitores. Os romances agora dados a público são “Paixão Segundo Mateus” e “Messa Pro Papa Marcello”, reunidos em único volume.

O primeiro deles, mais longo, é ambientado numa família fanática em matéria de religião e que cria o filho em clima de intensa religiosidade, praticando sempre atos de fé e em constante contato com a igreja e os padres. É difícil apontar o mais religioso, se o pai ou a mãe. Em consequência, o filho se torna também ardoroso crente a ponto de quase odiar as mulheres, inclusive a irmã. Num dos momentos mais curiosos da narrativa, o autor retrata um músico sem queixo e grande beberrão, sempre presente em um boteco das proximidades e que o chamava de filho do padre.

– Lá vai o filho do padre! – ele bradava em voz fanhosa sempre que avistava o garoto. Este, no entanto, não o levava a sério e até o cumprimentava e sorria para ele. Tudo indica que o tal músico era Noel Rosa, mesmo porque o fato aconteceu em Vila Isabel, reduto onde ele reinava. Essas e outras passagens parecem indicar que o romance guarda muito de autobiográfico ou memorialista. Nas suas crônicas, Cony recordava com frequência os tempos de seminarista.

Criado nesse ambiente, seria previsível que o menino fosse dar no seminário com a intenção de se tornar padre. Então o romance passa a acontecer no interior do seminário. É uma vida monótona, regrada, repleta de horários e, acima de tudo, de orações. Padre Mateus, o mais intelectualizado, é epilético e o padre Lucas se torna aleijado em virtude de grave acidente. Fica com uma perna paralisada e perde três dedos da mão direita. Há trinta anos luta como um desesperado para construir a sua igreja, mas, quando ela está quase pronta, incendeia e é destruída, tudo por artes de um empregado estranho e que tem um só olho. Em meio à trama, surge uma Raquel que inferniza a vida dos reclusos. E o padre Lucas acaba destituído de suas ordens e recolhido a um abrigo de idosos. Desfecho deveras tocante e doloroso que evidencia a política presente em todos os meios sociais. Para completar, o médico do hospital próximo se suicida ao figurar como suspeito da morte de Raquel. É um romance em que não faltam dramas e tensões.

O estilo de Cony é muito pessoal e típico. Exige atenção do leitor mas expõe tudo com muita clareza.

O segundo romance, bem mais breve, também tem a religião como pano de fundo. Nele o narrador, depois de muito pensar, resolve deixar o seminário e enfrentar a vida “aqui fora.”  Chama atenção a figura da irmã, pessoa de temperamento forte, alta executiva de um grupo econômico e de quem o narrador se torna seus “olhos e ouvidos.”  Suspeito de que haveria um amor proibido pela irmã, mas isso não chega a ser expresso. Enquanto isso, ele mantém um caso com uma sueca alta e um tanto sardenta.

Na crônica ou no romance, vale a pena ler Cony.    

Enéas Athanázio: escritor e jurista catarinense, uma das maiores autoridades do país sobre cultura indígena, colunista da revista Blumenau em Cadernos e do jornal Página 3, é autor de mais de cinquenta livros, entre eles Meu chão, O perto e o longe e O pó da estrada.

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