Dona Maria Rosa decidiu que tiraria a neta daquele estado de qualquer jeito, a arrastaria se fosse preciso, e foi isso que fez. Num domingo de manhã, Dona Maria Rosa abriu a janela do quarto da neta debaixo de gritos, protestos e resmungos, e assim mesmo, puxou as cobertas da cama da neta:
— Chega disso! Hoje você vai falar comigo, mesmo sem vontade!
— Que saco vó, é o único dia que eu tenho para dormir.
— Depois que morrer, você vai ter tanto tempo para isso!
— Que argumento idiota, clichê!
— Clichê é deixar o tempo passar, e sempre ver tudo do mesmo jeito! Vem conversar um pouco!
Mais gemidos e protestos. Maria Rosa se levantou e seguiu a avó, afinal ela nunca pedia nada. Dona Maria Rosa preparou um daqueles cafés da manhã irrecusáveis, com geleias, biscoitos, bolo, e observava a neta enquanto suas olheiras se moviam a cada vez que mastigava. A neta passou pela sala para saudar os pais, os dois se surpreenderam que estivesse acordada tão cedo, Dona Maria Rosa apareceu rindo e dizendo:
— A culpada sou eu. Vamos para o quintal ver as flores, vem!
Outros gemidos fundos e tristes ameaçaram a manhã.
Parecia improvável que aquele espaço realmente existisse em uma cidade como São Paulo, mas estava bem ali, e parecia uma imensidão de terra para quem trabalhava o dia todo sentada em um lugar onde o ar circulava por refrigeração, como era o caso de Maria Rosa. Era um pedaço de terra em que floresciam margaridas, camélias, cravos, colchão de noiva, um caramanchão artesanal feito pelas mãos de Dona Maria Rosa, de onde brotavam jasmins dos poetas que escorriam cheirosos que conversavam com o vento. Para Dona Maria Rosa, aquele pedacinho de chão era uma fatia da eternidade, era poeira vinda da imensidão de montanhas, que robustas ecoavam em outros lugares. Seu coração se agigantava levado por aquele pedacinho de terra até os confins de um mundo desconhecido. De outros vasos, os jasmins-estrela pareciam querer cheirar ainda mais forte que os jasmins dos poetas, e as espécies teciam tramas entre si em língua prolixa. Mais para a esquerda, verdejava uma horta com almeirão, rúcula, alface, escarola, espinafre, cenouras, rabanetes, batatas, pepinos, tomates e um canteiro de ervas. Viviam no canto esquerdo daquele pedacinho de chão, árvores robustas forradas de jabuticabas e mexericas, um pé de limão-cravo que falava a língua ácida e boa dos cítricos.
— As margaridas brancas estão floridas, tem um perfume doce como biscoitos saídos do forno! A margarida pode ser chamada bem-me-quer, olho de boi, margarita, margarita-maior, malmequer, malmequer-maior, malmequer-bravo, bonina. Às vezes olho para uma flor e consigo perceber seus sentimentos. Nos bichos é mais fácil de se perceber os sentimentos, não entendo como tem gente que acha que planta e bicho não sentem! Mas o que eu quero saber é porque você está tão triste, você está sempre mais para malmequer, do que bem-me-quer, por quê?
— Cansaço, vó, só isso.
— Só isso não, tem mais coisa.
Dona Maria Rosa percebeu que não ia ser fácil conversar, desviou o assunto.
— Olha essas margaridas amarelas, algumas vem da África do Sul e outras dos Estados Unidos, lá eles chamam de Suzan de olhos pretos, parece mesmo uma Suzan de olhos pretos!
— Lembro de um bolo em formato de margarida que você fez no meu aniversário, não sei quantos anos eu tinha.
— Você não queria que eu cortasse e servisse o bolo para as outras crianças, queria ficar com tudo, fez uma choradeira!
— Não chorei porque queria ficar com tudo, foi porque eu não queria que você cortasse e desmanchasse aquele bolo, que era tão lindo!
E seguiram pela manhã conversando de mansinho. O sol modificou o rosto de Maria Rosa, que no final do dia, parecia um pouco com algodão doce, porque aquele rosado do sol, tinha feito a pele dela cheirar até mais doce. A conversa também tinha aliviado um pouco seus corações, mas o chumbo ainda estava lá pulsando no coração da neta e da avó, chumbo que pesava mais no coração da neta, que carregava segredos e choros engolidos, que juntos, eram uma massa confusa de frustrações.
Tudo seguiu na semana seguinte como sempre tinha sido, dias que esmagavam boas intenções e esperanças, repetições que empacotavam trajetos de ônibus, buracos nas ruas, solavancos que se repetiam, uniforme lavado e colocado no corpo para trabalhar, compras que deslizavam pela esteira. Maria Rosa, vendo os produtos desfilando como pedras, na esteira logo à sua frente, teve um pouco de saudades da conversa com a avó, do cheiro bom das flores, do sol que tinha se infiltrado em filetes de calor pelo seu corpo, que amaciaram sua pele. Se perguntava por que não tinha acompanhado antes sua avó até o jardim. A avó tinha convidado a neta muitas vezes, e a neta não sabia direito porque, se por hábito, por preguiça, por desânimo, falta de perspectiva, cansaço, ou tudo aquilo junto, não sabia por que sempre tinha se recusado a acompanhar sua avó. Mas aquele esforço tinha sido tão bom, conversar um pouco e ficar perto de sua avó tinha sido importante. Maria Rosa, que nunca falara muito, agora estava ainda mais calada e não conversava com quase ninguém. Durante o trabalho só podia trocar algumas palavras, uma conversa rápida com um colega nos intervalos, conversas curtas aqui e ali. Quando chegava em casa estava cansada demais para conversar e aquela rotina tinha se repetido por dois anos, desde que tinha deixado o cursinho. Não podia se queixar para a família, tinha que aguentar.
No domingo seguinte, assim que a avó despertou a neta, as queixas e lamentos foram um pouco menores, porque a neta se lembrou daquela sensação de carmim sedoso em sua pele, aquela carícia de sol que se espalhava e rodopiava entre perfumes de flores, entre grandes e menores botões, entre hastes de plantas longas como pescoços de cisnes, e hastes delgadas e retorcidas, tortas e atarracadas. Os domingos foram passando daquele jeito, com um pouco de dificuldade no começo, e pouco a pouco, tinham se tornado um momento de encontro, de brincadeira, um momento sadio em que se festejava o sol, as folhas, as flores e suas pétalas, o crescer das árvores e do afeto entre neta e avó. E a avó ensinava:
— Hoje vamos trabalhar para as camélias, que tem cheiro pequeno e delicado, vamos trabalhar também para os jasmins que cheiram demasiado. Vem, vamos regar as camélias que elas gostam de solo úmido!
Dos regadores, a água escorria e brilhava numa corrente de bem, que nutria as flores que ficavam ainda mais brancas e rosadas, a água fazia as pétalas levantarem voo.
— Chega! Não encharca a terra, as camélias não gostam! Água, só duas vezes por semana, e sem encharcar a terra, é disso que elas precisam.
As flores, depois de beber, se alongavam para a vida, era extraordinário. Avó e neta ficaram ali contemplando aquele crescimento silencioso. Envolta pelo silêncio, Dona Maria Rosa pensava que a natureza também podia ser implacável, trazer terremotos, maremotos, parecer até cruel quando se via os bichos que se comiam uns aos outros, mas ela também sabia que não tinha como entender tudo, sabia que tudo que existe sob o sol está mesclado de luz e escuridão, e nem pensava em expressar aqueles pensamentos para a neta, que já carregava fardo pesado demais.
Dona Maria Rosa foi para perto do jasmineiro e disse para a neta:
— Esse moço cheiroso, nós vamos adubar com torta de mamona, cinzas e húmus. Vamos fazer o preparo, e depois a gente enterra em volta do pé da planta.
Os jasmins dos poetas cheiravam tão alto, que parecia que só eles existiam no mundo. E Dona Maria Rosa aproveitava o momento de trabalho gostoso para se aproximar ainda mais de sua neta.
— Filha, eu estive pensando e acho que entendi sua tristeza, você só trabalha e trabalha, depois que seu pai teve o acidente. Deve estar muito cansada, e os dias passam iguaizinhos, como se não existissem. Me desculpe por não poder ajudar mais.
Foi impossível conter os rios represados que vieram para fora, com aquelas lágrimas de sal e tristeza que começaram a banhar as flores, que estranhavam aquele riozinho salgado que pingava como cachoeirinha por cima delas. Levou um tempo para que os soluços espremidos no peito da neta se acalmassem, a dor estalava, rangia, ocupava espaços, parecia que iria arrebentar tudo, mas com os abraços da avó, o ataque de dor foi diminuindo, até que restavam só uma e outra lágrima pingando do queixo da moça.
— Desculpe, mas é que está sendo muito duro tudo isso, e eu não queria preocupar vocês. Não tem jeito, tem que seguir, que jeito, vó?
— Tem jeito, tudo tem jeito! Você precisa pensar nos seus sonhos, isso não vai durar para sempre.
— Eu sei, mas quando vai ser esse depois? Eu acho que depois, tudo vai ficar ainda pior.
— Pode até ficar bem difícil, mas você não pode ir pelo lugar comum, pela cabeça da maioria. Deixa os outros rirem, achar que você é boba, não importa! Você tem que ousar pensar naquilo que você mais gosta, que mais quer fazer, aquilo que você acha que é loucura! É isso que você tem que fazer. Sua cabeça vai atrapalhar, falar que não! Deixa falar, vai em frente, tenta todos os dias. Vai ser fácil? Não mesmo, mas pelo menos tenta!
— Vó, a senhora está parecendo livro de autoajuda, sabia?
— Nunca li um livro de autoajuda. Estou falando sobre o que a vida que me ensinou. Agora, se os outros acham que o que eu falo é livro de autoajuda, deixa achar. Eu sei que aprendi isso com a minha nona Antonella, a minha avó italiana que viveu quase cem anos com alegria e saúde. E não tem mulher fraca nessa família! A vó Isaura, que era pernambucana, também era forte. Viveu nuns confins onde não tinha nada, nem água tinha! Não é que ela fosse tonta e achava que isso era bom, ela não era simplória não, não tinha estudos, mas não era simplória. Ela achava aquilo ruim, e fez de tudo para que os filhos pudessem estudar. Ela pegava tudo de frente, sem pestanejar! Ela e o avô Anselmo fizeram uma terra de nada crescer, até virar uma fazenda enorme.
— Esforço e mais esforço! Isso cansa, vó.
— Sem esforço nada acontece. Mas no seu caso, você odeia o supermercado porque não é teu sonho, então fica pesado e parece um esforço inútil e sem fim.
— Agradeço esse emprego, vó.
— Eu sei, ainda bem que tem esse emprego, senão como ia ser? Mas todo mundo tem alguma coisa que sonha em fazer.
— Eu não sou otimista como a senhora.
— Não é só questão de otimismo, eu vou abrindo com os meus braços aquilo que eu quero, não desisto quando faz tempo feio, eu estou ali na chuva e no sol, se em um momento parece um inverno eterno, vai virar primavera, isso é certo!
— A senhora parece mesmo livro de autoajuda!
— Não tem importância.
— Eu não posso alimentar sonhos. O pai que não pode mais trabalhar, a senhora já tem idade, e a mãe não pode sustentar todo mundo sozinha!
— E quem disse que eu estou falando isso?
— Eu quero ser antropóloga, quero ensinar as pessoas sobre a história, a cultura, as artes de outros povos. Quero fazer pesquisas em outros países, viajar, como vou fazer isso?
— Primeiro, temos que dar um jeito de você fazer faculdade. Você está misturando tudo, pensando em um futuro que não existe, você ainda nem entrou na faculdade e já está preocupada com seu futuro como profissional que precisa viajar!
E foi vivendo um dia depois do outro, dias ensolarados, dias estúpidos, dias terríveis e dolorosos, que Maria Rosa se formou como antropóloga. Sua avó sempre ao seu lado, instaurando aquela loucura sã em sua cabeça, a empurrando para tomar o seu lugar entre pedreiras, penhascos e roseiras. Aquele nome, Maria Rosa, ganhou outros significados conforme os anos transcorriam, e foi quando a neta já nem sabia mais por que tinha duvidado da inteireza daquele nome, foi em um desses dias em que ela recordava que tinha desprezado seu próprio nome, que encontrou sua avó morta. Eram seis horas da manhã, as luzes boiavam calmas e indigestas entre as cobertas da cama. Ela chamou a avó duas vezes e um calafrio rompeu em sua coluna, avisando que sua avó não responderia mais.
Ver a expressão horrenda no rosto de sua avó falecida, rosto retorcido como uma caricatura, muito pior do que a secura das flores murchas, desidratadas como esqueletos espalhados pela grama que sobrevivia verdejante. O corpo da avó parecia oco como aqueles restos de insetos que sobravam no jardim, depois de viverem por poucos dias, em um ciclo que para eles, deveria parecer eterno. Os insetos eram tão estúpidos como as pessoas, achavam que eram livres enquanto voavam por aí, nem imaginavam que cairiam doentes, despedaçados e mortos. Aquela visão de sua avó inerte, e mais do que isso, o contato com aquela casca abandonada naquela cama, em que não se encontrava mais nada por dentro, que parecia muito menor do que tinha sido quando viva, e que por isso, parecia uma miniatura na cama descomunal, foi um golpe duro para a neta. Onde estava a alegria, a esperança, o otimismo? Tinham sido sugados por um buraco que engolia pétalas, plantas, borboletas. A cama que tinha gerado sua mãe, era agora a cama de uma morta. A terra em que brotavam flores, era agora a terra que engolia o corpo de sua avó. E os malditos insetos e vermes, comeriam o corpo de sua amada avó como se estivessem em um banquete, e sua avó nunca mais misturaria sabores, amassaria pão, enquanto a cozinha tingia-se de farinha. Maria Rosa esqueceu a sabedoria, só conseguia ver os restos, os andrajos da carne seca, dos olhos duros, do corpo ressequido que parecia ter sido sugado. Procurava pela casa em busca da avó, tocava em suas coisas para encontrar qualquer vestígio, derramava lágrimas ressentidas nas flores. Tudo era como ela tina pensado, a vida era injusta, cruel.
Abandonou o jardim, que foi definhando. Até que, por acaso, ao folhear um livro de receitas da avó, encontrou uma nota escrita e endereçada para ela: “Neta querida, menina que recebeu o mesmo nome que eu. Posso imaginar sua dor no dia em que eu morrer, penso nisso quase todos os dias. Sei que essa conversa é difícil e a maioria não quer nem saber de falar sobre morte, mas eu preciso te deixar alguma coisa para que você siga. Não deixe meu jardim morrer, eu tenho quase certeza que você não vai cuidar dele por tristeza, pensando “Para que cuidar, se tudo vai desaparecer? Para que amar, o que está destinado a morrer?”. Nem toda pergunta tem uma resposta, a maioria dos porquês não tem resposta, nos resta viver. Minha amada neta, viva por mim, viva!”.
Era aquilo, não existia outra opção, senão a vida. Os meses se arrastavam, as lágrimas não secavam, o coração parecia terra árida, trancado em arca velha e enferrujada, cujas chaves tinham sido perdidas. Com muito esforço, o tempo recolheu as lágrimas, trouxe de volta os regadores e adubos. Maria Rosa seguiu cuidando do jardim, que era como se fosse o corpo de sua avó que ela retirava do ressecamento e da morte.
Denise Courtouké: atriz e escritora paulistana, estudiosa das linguagens do teatro, dança, literatura, dramaturgia do corpo e do ator, participando de vários festivais de teatro nacionais e internacionais; assinou as dramaturgias teatrais “Camille Claudel, Divino Impulso”, com apresentações no Sesc Vila Mariana, “A hora da estrela”, no Sesc Pompéia, e “Entrevistas sobre a decadência”; entre seus títulos figuram os romances “Olhos feitos de poeira de estrela e névoas”, “Ventre de vegetação e lama”, “Relatos de sangue e vácuo”, o livro de contos “Com as letras da tua voz”, o livro de poemas “Rubros”.
E-mail: denisecurtouke@gmail.com