Uma epígrafe de peso: “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa” (palavras de Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas- do Guimarães Rosa).

1) Jamais me esquecerei da frustração ao ver sumir, em português, o fabuloso balbuciado que inteligentemente existe no verso de San Juan de la Cruz – “un no sé qué que quedam balcuciendo” -, que a tradutora Dora Ferreira da Silva liquidou com “um não sei quê de seu mero balbuciar”.

2) “To be, or not to be; that is the question”, já foi traduzido como “Ser ou não ser, essa é que é a questão”, “esta é a questão”, “essa é a questão”, “eis a questão”, “eis a dúvida”, e até “este é o problema”.

3) Uma lenda antiga, conhecida com título na forma latina – “Stultífera Navis” -, gerou um quadro de Hieronymus Bosch, de 1490, registrado no Louvre – a que pertence – como “La Nef des Fous”. Quatro anos depois, o francês Sebastian Brant publicou, na Alemanha, um livro a respeito – “Das Narrenschiff”, que gerou o “The Ship of Fools”, romance da americana Katherine Anne Porter, publicado em 1962 e que Stanley Kramer levou para o cinema em 65, mantendo o título, que tem três versões em português: “A Nave dos Tolos”, “O Navio dos Loucos” e “A Nau dos Insensatos”.

4) Quando você lê a peça “O Mercador de Veneza” ou a vê no teatro ou cinema, dá com a bela e riquíssima Pórcia submetendo cada pretendente seu ao teste de acertar em qual de três cofres que lhes expõe está o seu retrato: no de ouro, no de prata ou no de chumbo – coisa que o Bardo foi buscar na “Gesta Romanorum”. Claro que isso é símbolo…, daí o estudo Das Motiv der Kästchenwahl – que na edição Standard das Obras Completas de Freud vem, na versão inglesa, … nada fiel, como ‘The Theme of the Three Caskets’, de que vi duas versões em português: “O Tema dos Três Cofres” e – o mais chique: “O Tema dos Três Escrínios”.

5) Troquei uma série de e-mails com Ivo Barroso sobre sua tradução do célebre Soneto 65, de Shakespeare. Muita ousadia, claro, pois meu inglês é de ginásio. Bem. É incrível como o Bardo parte do óbvio: lamenta que nada escape da morte, dO nada, inclusive o objeto de seu amor, mas atenta para o fato de que essa… paixão… ainda possa… “na tinta negra… brilhar intensamente”. Bem, mas magia maior – e aí eu vi o problema – é que a beleza do soneto está mais na forma como isso é dito, através da quase simetria dos contrários “black”… e “bright”.
Da morte nada escapa,
O! none, unless this miracle have might,
That in black ink my love may still shine bright.
Nada! – Ivo traduzira – A não ser que a graça se consinta
De que viva este amor na negra tinta.
Bonito, mas o jogo da palavra “black” desabrochando em “bright” se perdera.
Ivo me escreveu:
– Realmente, “De que viva este amor na negra tinta” não traduz na sua integralidade a intenção do verso “That in black ink my love may still shine bright”, mas creio que é o máximo que um tradutor pode conseguir na tentativa de emular, não as palavras em si, mas a intenção do verso. Ou haverá soluções melhores?

6) Não sem razão, Bachelard deu à sua tese de doutorado um título carismático: “Ensaio sobre o Conhecimento Aproximado”, em que fala do “inacabamento fundamental do conhecimento”, porque – como também diz Karl Popper – apesar de todo o esforço da ciência, “a certeza não está disponível”.

7) Meu neto me contou esta:
– O porteiro, ao manobrista: “Pegue aquele Ford amarelo e leve pro estacionamento”. “Sim senhor”. “Agora, o Chevrolet vermelho”. “Sim, senhor”. “Agora, o Fiat branco.” “OK”. “O Renault prateado”. “Agora mesmo”.
E, por fim:
– O Celta preto.
O manobrista, olhando pra cima:
– Vai chover.

8) Já quando eu falava para alguém a respeito do Irandhir Santos, com quem eu contracenara em O Som ao Redor, o cara me perguntou:
– É aquele ator de “Olhos Azuis”?
E eu, no mundo da lua:
– Irandhir de olhos azuis?! Não.

9) Nunca entendi a razão de Bárbara Heliodora ter traduzido “The rest is silence” – , frase universalmente aceita como “O resto é silêncio”, por “O mais, tudo é silêncio”.

10) Quando o maestro Kaplan dizia que é difícil, para o executante, interpretar exatamente o que tão distantes autores pretenderam com suas partituras, penso na fala de Calpúrnia, em “Júlio César”, sobre a terrível série de visões que Roma tivera na noite anterior, entre as quais a de “fiery warriors”. Lemos no dicionário: “Fiery: ígneo, de fogo, ardente, fogoso, furioso”, e surge the question: “Guerreiros em chamas”? “Guerreiros fogosos”? “Furiosos”? Ou aceitamos algo igualmente dúbio como o “incendidos” (segundo Houaiss “incendiados”, “ardentes”, “exaltados”) como está na tradução de Carlos Alberto Nunes? Problema para quem quiser filmar a cena, claro.

11) Pense em como se perdeu no tempo (século XIV) o sentido do nome “Divina… Comédia” para algo que arrola os intoleráveis suplícios do inferno, as torturas mais suportáveis – do purgatório –, e as bem-aventuranças do céu. Pense em como se perdeu no tempo (século XIII) o sentido do nome “Paixão… de Cristo”, que já vi um gozador chamando de “O xodó de Cristo”.

12) E o que você me diz daqueles chifres no “Moisés” – tanto no de Miguelângelo quanto no de Klaus Sluter – , graças a uma tradução indevida de “raios de luz” por “cornos”, no Livro Inspirado? Pior: por que todos lemos no Gênesis que “no Princípio criou Deus o Céu e a Terra”, se no original consta “no Princípio criaram os Deuses o Céu e a Terra”, já que “Elohim” é o plural de “Eloah”? E não se trata de acidente. “Elohim” aparece 165 vezes no Gênesis, 56 no “Êxodo”, desaparecendo apenas daí por diante, substituído por “Yahweh”.

13) Veja-se, também, o caso de todo um complexo teorético erguido por Freud em “Leonardo da Vinci e Uma Lembrança da Sua Infância”, a partir de um despercebido erro de tradução numa narrativa do gênio renascentista, sobre um evento significativo nos começos de sua vida. O Pai da Psicanálise lera numa versão alemã da biografia de Leonardo, escrita por Merezhkovsky, que um abutre teria passado a cauda nos lábios do pintor quando ele ainda estava no berço, partindo daí para inevitável associação com o hieróglifo egípcio “Mut”, que tem forma de abutre, ao que Freud nos pergunta, insinuante: “Será que sua semelhança com nossa palavra ‘mutter’ (“mãe”, em alemão) é mera coincidência?” Coitado! Todo um castelo de cartas montado em cima da transferência correta da palavra italiana “nibio” para a russa “korshun”, mas incorreta para o alemão “Geier” (“abutre”), quando o certo seria “Milan” (“milhafre”, espécie de gavião). O abalo que o deslize provocou na credibilidade de Freud foi imensa. Mas quem não o cometeria?

14 ) Como os evangelhos não são apenas quatro, mas dezenas (Você já leu os apócrifos?) fiz um quadro, “Eu sou a Verdade” – em que se vê o close de um ruivo nazareno de Frá Angélico ao lado do close de um escuro Ecce Homo de Pedro Américo, ambos juntos do close de um perplexo Jesus feito com sangue no lenço de Verônica pelo fauve Rouault, fazendo par com o close do estilizado e plácido Cristo de um vitral gótico francês, enquanto o estrábico exofórico Filho de Deus, do Aleijadinho, circula junto do belo Salvador do filme de Zeffirelli, o imberbe Lux Mundi das catacumbas – mais acima – em parelha com um esbugalhado Messias medieval – e tome INRI versão Velázquez, Rubens, Rembrandt, etc, etc, etc.

W. J. Solha: romancista, poeta e ensaísta paulista radicado na Paraíba, é também dramaturgo, ator, artista plástico e publicitário, com vários livros publicados e premiados, transitando em várias frentes de nossa cultura; um artista "multimídia" por excelência.

E-mail: waldemarsolha@gmail.com