Há uma estranha relação, porquanto permeada de metáforas, entre o cronista e o mundo que o cerca, e que também o motiva a escrever suas teses. Digo “o mundo que o cerca”, porque falarei de uma pequena casa, de três janelas, de cujos peitoris, ele, estendendo o olhar para além do cercado, observa a vida que segue à revelia de seus sonhos, de suas crises, de suas vontades. Existência que ora se adequa, ora não se enquadra no que ele diz, ou melhor, escreve.
A primeira janela dá para o passado. E lá está o cronista, debruçado no parapeito, contemplando cenas do já vivido, para transfigurá-las, ou melhor, desfigurá-las, para que caibam, sem trair em demasia a consciência, na próxima história que ele pretende contar. O perigo dessa ventana, é que o cronista, velho de muitos anos, dela reluta em afastar-se, devido ao agradável efeito anestésico que alguns fatos decorridos têm sobre a preguiça do corpo e do intelecto.
O cronista assume então o papel de biscateiro. Conserta sapatos, remenda roupas, dá nó em gravata, ajeita relógio, apara cabelo, caia paredes, repara goteiras, tira automóvel do prego, enche pneu de bicicleta, enfim, faz de um tudo para revestir o assunto, o cenário e as personagens de sua crônica com as malhas de uma espécie rara de beleza, calcada no requinte do humor e na peçonha da ironia, que disfarça uma crítica sutil à vivência moderna.
A terceira janela dá para o futuro. E lá está o cronista, de mãos no queixo e cotovelos no resguardo, a imaginar uma vida de pão e vinho, em tudo diferente da penúria de seu dia a dia real. Ou então projeta e edifica um mundo novo com os entulhos da velha ordem. Ciente de que a linha de seu destino é curta, e pode ser cortada logo mais à noite ou amanhã de manhã, faz de seu país ou do planeta os motes de suas inquietações políticas, filosóficas, existenciais.
Nessa fenestra, o cronista transfaz o cérebro em árvore invulgar, para que nela pousem os imprevisíveis pássaros da poesia. Como a futuridade pode vir a frustrar as previsões de quaisquer ciências, o cronista alimenta suas aves com os grãos do sentimento, do engenho e da imaginação, e estas passam a cantar enigmáticos universos, de astros desconhecidos e inalcançáveis. É bom também aí não se demorar, sob pena de se perder nessas viagens intergalácticas.
A segunda janela é a do meio. Está escancarada para o presente, e nela o cronista depara-se com o mundo nu e cru, ou seja, a realidade deficitária, sem os ornamentos da fantasia ou da alienação. Essa claraboia exige do cronista um olhar perspicaz e uma atilada capacidade de observação e interpretação das circunstâncias à frente, nas quais está enredado até a medula, mesmo que às vezes não o saiba, pelo fato de algumas se lhe afigurarem distantes.
É a fenda mais importante da casa. Por essa abertura entram os raios luminosos do Sol e da Lua, e acima, um pouco de lado, no céu noturno, brilha o estandarte geométrico do Cruzeiro do Sul. Por essa fresta ecoam as conversas e desentendimentos dos vizinhos, e desfilam os cortejos da rua, dentro e fora dos automóveis. O carteiro vê o cronista absorto e lhe entrega as correspondências – nenhuma carta, isso é certo, mas panfletos e contas que não acabam mais.
No entanto, é salutar, para o cronista, não demorar-se nem mesmo na indubitável janela do meio. Ele tem a porta dos fundos, que lhe abre o rumo do quintal – hortas e árvores -, e da frente, que lhe mostra o jardim e proporciona os caminhos que vão dar todos nesta grande confusão que é a vida. Desse alarido ele faz sua valsa, e põe-se a beber, a cantar e a dançar, até alguém lhe bater no ombro, sinal de que ele, e não o mundo, está prestes a acabar.
William Costa: jornalista de carreira e escritor paraibano, editor do suplemento cultural Correio das Artes, cronista do jornal A União, tem vasta experiência em veículos de imprensa e é autor do livro de crônicas e contos Para tocar tuas mãos - Chronesis.
E-mail: wpcosta.2007@gmail.com