Em 82, ao antever a tragédia em que a Argentina estava se metendo com uma guerra pelas ilhas Malvinas (colônias chamadas, em Londres, de Falklands), vi meu amigo Kaplan – judeu argentino – dizer que o povo estava atendendo em peso à convocação “patriótica” da até então odiada ditadura militar, que apelara para isso a fim de se manter no poder, quando já caía pelas tabelas. “E o teu país cegou, Kaplan?” E ele: “Isso é completamente visível daqui, mas lá – segundo conversas por telefone com minha família – o que se vê é o resultado de uma terrível lavagem cerebral, em que se inclui ficar em pé cantando o hino nacional antes de cada sessão de cinema, enquanto as mães da Plaza de Mayo tecem meias de lã para seus garotos, que irão aguentar temperaturas insuportáveis nas trincheiras, o povo todo transformado num fanático inimigo da Inglaterra!”

E o que se viu – daqui, pelo menos – foi os britânicos que vinham-que-vinham, Atlântico abaixo, com todo o poder bélico de sua marinha. Resultado: 649 argentinos mortos, 1657 feridos, 11313 prisioneiros, mais a derrota acachapante, garotos com pés decepados por causa do frio, a multidão caindo em si ao tempo em que a ditadura – pelo menos isso – também desabava, enquanto a direita – com Margaret Thatcher – se elegia triunfante, na velha terra de “Biu” Shakespeare.

Isso tem a ver com o fato de a grande cineasta Leni Riefenstahl, que realizara obras-primas glorificando o nazismo, chocar-se, na América – quando levou seus geniais filmes para lá -, ao ser inquirida pela imprensa a respeito dos pogrons, campos de concentração e câmaras se gás, negando veementemente a possibilidade de que tal coisa estivesse acontecendo.

Isso tem a ver com o fato de que os contemporâneos de Bach e de Rembrandt viram neles artistas ultrapassados, menores, conservadores.

Tem a ver com as 700 telas de van Gogh encalhadas nos porões da galeria de arte do irmão, quando Vincent e – seis meses depois – Theo – morreram, enriquecendo, em seguida, a viúva do marchand, Johanna Gezina van Gogh-Bonger.

Isso tem a ver com o fato de que para os americanos o avião não foi invenção de Santos Dumont, nem, para nós, dos irmãos Wright. Fora várias outras controvérsias.

Isso tem a ver com milhões de muçulmanos e outros tantos milhões de budistas e outros tantos milhões de judeus não quererem nem saber de Cristo, nem nós de Maomé, Buda ou… Vichnu.

Tem a ver com o que conta Donald Sassoon, em “Mona Lisa” (Record, 2004): que Montaigne e Rabelais foram à Itália e escreveram deslumbrados sobre a Roma dos Césares, … sem dar a menor atenção às obras de Miguelângelo e de seus contemporâneos, simplesmente porque apenas trezentos anos depois é que se passaria a ver o que nos parece hoje o gigantesco Renascimento Italiano.

E ele conta mais esta: em 1900, a tela Mona Lisa – ou La Gioconda – era conhecida apenas por uma elite. Então se deu que o italiano Vicenzo Peruggia tirou essa pintura de Leonardo da moldura e se mandou do Louvre com ela debaixo do casaco. O impacto foi grande. E vieram as manchetes tipo “jamais houve uma pintura mais próxima da perfeição”. Louvre reaberto uma semana depois, a multidão foi em peso ver o espaço vazio e os ganchos que sustentavam o quadro na parede. Maior consagração ainda dois anos depois, com Peruggia preso mais a peça fabulosa, em Florença: a Galeria degli Uffizi superlotou para ver a obra-prima de da Vinci, que em Roma foi visitada até pelo rei Victor Emanuel III. O Louvre, então, viveu seu momento de glória. E Mona Lisa se tornou ícone maior da civilização ocidental, talvez porque o povo gosta de notícias como as geradas por Van Gogh ao cortar uma orelha e se matar com um tiro, ou por Frida Kahlo ao ser arrebentada num desastre e tornar-se amante de Trotsky.

Isso tem a ver com a França não mais produzir um Sartre ou Camus, Bergson ou Rimbaud, a Itália não ter mais Fellinis, Rossellinis, Antonionis e Pasolinis, Buenos Aires ter parado no tango com Gardel.

Imagine a história que será contada a respeito do Brasil que não estamos vendo.

W. J. Solha: romancista, poeta e ensaísta paulista radicado na Paraíba, é também dramaturgo, ator, artista plástico e publicitário, com vários livros publicados e premiados, transitando em várias frentes de nossa cultura; um artista "multimídia" por excelência.

E-mail: waldemarsolha@gmail.com