— Uma mesa para o casal?

Nem ele, nem ela responderam ao garçom. Segundos longos.

Sem resposta, ele fez um gesto com a mão direita e os conduziu para a área reservada, mais ao fundo.

Saiu e voltou com o cardápio. Ressabiado, afastou-se, como se incomodado com aquele silêncio à mesa.

Minutos depois, retornou e esperou. Caderneta em punho, a caneta apontada para o papel, os olhos de serviço como se fugindo dos dois.

— O de sempre para mim.

O rabisco da esferográfica fazia o único arremedo de diálogo.

— Para mim, também. O de sempre — emendou a senhora.

Acostumado a servi-los, em separado, quase que se confundiu com os pedidos. Como forma de evitar vexame, ele resolveu quebrar a mudez.

— Uma água com gás e um café expresso, pequeno, para o senhor. E, para a senhora, um suco de abacaxi com hortelã, já batido com cinco gotas do adoçante, e uma empada média de frango e ricota. Confere?

Os dois responderam-lhe com os olhos. Um discreto piscar de afirmativo.

Cuidou de sair da mesa, a levar o pedido ao balcão.

Antes de passar a nota para a cozinha, encostou-se à coluna de granito, como se se recobrando do esforço (ou da emoção?) de não transmitir tamanha alegria em revê-los juntos.

Ao longo do ano, acompanhou a separação do casal. Lembrava-se, claramente, do estado em que lhe servira o primeiro café expresso, há exatas cinquenta e duas semanas.

***

“Ele quase não levou a xícara aos lábios trêmulos, mexendo o café com adoçante seguidas vezes. A água com gás servida na taça elegante ao lado; os Diários, de Kafka, sobre a mesa. Como se abandonado, relegado ao desprezo. Incomodado com aqueles olhos baixos, e com a dor que lhe escorria dos lábios finos, eu encostei-me, pondo a minha mão direita sobre o seu ombro esquerdo. ‘— A vida tem dessas coisas, senhor!’ Senti, lembro muito bem, vergonha daquela torpe afirmação. Seria consequência dos livros de autoajuda que eu andara lendo? Coisas pescadas daqueles tomos usados, já esquecidos pela minha companheira na escrivaninha do quarto e sala. Ele voltou-me os olhos, e eu quase fugi ao vê-lo submerso em um mar, revolto, de agonia e aflição. Nas semanas seguintes, no mesmo horário, fim da tarde, ele voltava, e eu o servia. Passei a oferecer-lhe tão somente a minha companhia, solidária mas calada. Certas aflições, inferia, só o tempo tem a prescrição certa, a droga exata, não para curar, somente para remendar, cicatrizar, evitar a exposição ao mundo tão pragmático. Ao fim de cada mês, um novo livro como companhia. A náusea, de Sartre; Vidas secas, de Graciliano Ramos; O estrangeiro, de Albert Camus; Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; Enfermaria N. 6, de Tchekhov; Revolução dos bichos, de George Orwell; Crime e castigo, de Dostoiévski; Lavoura arcaica, de Raduan Nassar; Ilusões perdidas, de Balzac; Estrada nova, de Cyro Martins. Eu passava, gravava o título, e cuidava de adquiri-los no sebo no Centro. Aos trancos e barrancos, minha leitura não era das melhores, li essas obras, e passei a gostar daquele homem; a acompanhar, silente e solidário, se posso dizer assim, aquele drama humano. Até que, mês passado, ele voltou com outro Kafka, A metamorfose. Quando comecei a ler a transformação de Gregor Samsa, algo me deixara deveras inquieto. Já com relação a ela, de início, confesso, senti o reverso da medalha: mais solta, mais livre, a cada nova semana. Sempre ao meio-dia, a presença dela no balcão. Pedia-me o seu indefectível suco de abacaxi com hortelã (‘cinco gotas de stévia, não mais’) e, como arremate, uma empada média de frango e queijo ricota. Tão só com os dias, foi que eu passei a desvendar o embuçado por trás de tanta conversa entremeada com risos altos e largos. Numa espécie de disfarce, ela se vestia de palavras e de gestos amplos. Suas mãos me revelaram (ou a traíram?) o seu real calvário. ‘— A vida tem dessas coisas, senhora!’ Senti, relembro-me, tão claramente, da vergonha daquela minha abordagem. Ela calou-se e mexeu, seguidas vezes, com o guardanapo, amassando-o; os dedos trêmulos. Largou uma cédula alta sobre o balcão, copiosa gorjeta, e retirou-se, sem se despedir. Passou sete dias sem dar sinal de vida. Numa segunda-feira, mergulhada numa chuvinha impiedosa, ela se (re)aproximou do balcão e tocou no meu ombro esquerdo. ‘O de sempre!’ Seus olhos denotavam um cansaço singular. A partir daí, só falava-me de viagens. Cada semana, um país ou uma cidade (exóticos, para mim) cada vez mais distantes. Islândia, Marrocos, Ancara, Tanzânia, Síria, Macau, Nepal, Cingapura, Adelaide, Malásia, Lituânia. Passei a seguir o seu mapa. Naveguei no Atlas, que eu adquirira há tempo e nunca mais usara. Completava meus ‘estudos’ nos sítios da internet, especializados em geografia, bem como em história e em tradição de diferentes povos e nações. Na última semana, vestida com um vestido mais longo, quase de gala, ela portava um guia de Praga, na República Tcheca. Não me dirigiu a palavra; sentou-se ao balcão, tomou o seu suco, quase não tocou na empada, pagou e saiu. Nos seus olhos, um acento de mudança. Uma quietude de quem descobrira o conforto do silêncio.”

***

E, agora, de bandeja nas mãos trêmulas, o garçom volta à mesa, mesa que preparara para os dois, para servi-los. Algo o inquieta.

— O de sempre, amigos — avisa-os.

Com o reencontro do casal, ele desaba, os olhos fugindo dos dois:

— E como ficarei sem as visitas diárias dos dois, digam-me? Como eu ficarei, me digam?

Clauder Arcanjo: cearense adotado pelo Rio Grande do Norte que fez morada em Mossoró, engenheiro, escritor, poeta, cronista semanal do Jornal Gazeta do Oeste e resenhista do jornal literário mensal O Clandestino, também é professor da UERN e da UnP, sendo um dos idealizadores do Projeto Pedagogia da Gestão, com várias realizações voltadas para gestão, educação e cultura.

E-mail: clauderarcanjo@gmail.com