Homenagem ao “Grande Sertão: Veredas”

                                                                          

Tenho para mim que o romance “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, é uma obra inesgotável e a cada releitura exibe nuances até então não percebidas. Impressiona a enorme quantidade de figuras e personagens que habitam aquelas páginas. Algumas se mostram de maneira fugaz e outras com mais constância, muitas desaparecendo sem deixar maiores marcas e algumas assumindo posição de destaque. Muitas têm nomes estranhíssimos, frutos da portentosa imaginação do escritor, ao passo que outras nem sequer são nominadas.

Entre estas últimas está o Moço de fora (assim, com maiúscula), figura misteriosa que surge no Andrequicé. Esse gabola parou de passagem naquele lugar e garganteou que para ali chegar era capaz de gastar apenas vinte minutos. Isso porque costeava o Rio do Chico pelas cabeceiras, explicava. Ora, o normal, a cavalo, era consumir dia e meio para fazer o trajeto. “Despontar o Rio pelas nascentes, – excogita Riobaldo, personagem central e narrador, –  será a mesma coisa que um se redobrar nos internos deste nosso Estado nosso, custante viagem de uns três meses…” (p. 25). Pois bem, esse moço, se há (Riobaldo não o viu, se louva na “porfalação da gente naqueles dias de época”), estava mangando, fazendo fantasiação, doideira. Ou, então, a coisa era mais grave e ele era o próprio demo, o capiroto, o que-diga, o capeta, o satanazim, o cujo, o diabo em pessoa.  Já um tal Aristides, que vive num buritizal à direita, de nome Vereda da Vaca-Mansa-de-Santa-Rita, todo mundo crê que ele não pode passar em três lugares “designados, porque então a gente escuta um chorinho, atrás, e uma vozinha que avisando – “Eu já vou! Eu já vou!” – que é o capiroto, o que-diga…” Não obstante, Aristides está se engordando de rico. São mistérios do sertão, onde o diabo gosta de se mostrar. O diabo? Ora, ora, o diabo não há! – sentencia Riobaldo (p. 624).

Mesmo não havendo, o satanás está sempre nas cogitações de Riobaldo. Ainda nesse capítulo, ele relata o caso de Jisé Simpilício a “quem qualquer daqui jura ele tem um capeta em casa, miúdo satanazim, preso obrigado a ajudar em toda ganância que executa: razão que o Simpilício se empresa em vias de completar de rico. Apre, por isso dizem também que a besta pra ele rupêia, nega de banda, não deixando, quando ele quer amontar…” (p. 24). Colaborar nas malandragens dos negócios, nos briques e nas tramóias, até que ele se pare de rico, tudo bem, de pleno acordo. Agora amontar, isso não!

E vem o caso do rapaz seminarista “muito condizente, conferindo no livro de rezas e revestido de paramenta, com uma vara de maria-preta na mão – proseou que ia adjutorar o padre, para extraírem o Cujo, do corpo de uma velha, na Cachoeira dos Bois, ele ia com o vigário do Campo Redondo…” (p. 25). A pobre da velha estava espritada, carecia de reza forte, exorcismo. Riobaldo não relata o resultado da empreitada mas, em compensação, traz para o limpo, pela primeira vez, o “compadre meu Quelemém de Góis, que é quem muito me consola.” Ele “descreve que o que revela efeito são os baixos espíritos descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas e com ânsias de se travarem com os viventes – dão encosto” (p. 25). No entanto, conclui ele: “Não acreditei patavim” (Idem).

Riobaldo, jagunço aposentado, agora fazendeiro rico, fica incomodado com o rei das trevas e seus tantos nomes, suspira: “Se eu pudesse esquecer tantos nomes!” E depois, compungido, cogita: “E, mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do demônio. Será não? Será?” (p. 26).

Ele não existe mas perturba a paz do fazendeiro Riobaldo. Isso porque “o diabo vige dentro do homem!”

“Viver é muito perigoso” – filosofa ele.

Enéas Athanázio: escritor e jurista catarinense, uma das maiores autoridades do país sobre cultura indígena, colunista da revista Blumenau em Cadernos e do jornal Página 3, é autor de mais de cinquenta livros, entre eles Meu chão, O perto e o longe e O pó da estrada.

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