PARTE 3* – Um universo “pós geração X”[1]     

O renomado pensador Anthony Giddens, em sua pertinente obra As consequências da modernidade, argumenta que ainda não vivemos, ao contrário do que muitos pregam, em um mundo pós-moderno, no entanto é possível, para ele, que tal concepção da realidade já esteja a caminho. Em interessantíssimo trecho do referido livro, ao tratar de confiança e relações pessoais, no terreno do que ele nomeia de “transformação da intimidade”, acertadamente aborda, em nossos tempos, as relações interpessoais: “O oposto de “amigo” já não é mais “inimigo”, nem mesmo estranho; ao invés disto é “conhecido”, “colega”, ou “alguém que não conheço”. Acompanhando esta transição, a honra é substituída pela lealdade que não tem outro apoio a não ser o afeto pessoal, e a sinceridade é substituída pelo que podemos chamar de autenticidade: a exigência de que o outro seja aberto e bem-intencionado. Um amigo não é alguém que sempre fala a verdade, mas alguém que protege o bem-estar emocional do outro. O “bom amigo” – alguém cuja benevolência é disponível mesmo em tempos difíceis – é o substituto nos dias de hoje para o “honorável companheiro”.[2]  

De outra banda, talvez seja este, com efeito, o mundo pós-moderno – ou mesmo o mundo contemporâneo – de que tanto se ouvia falar no século passado. Desse modo, por oportuno, é de se registrar que este ensaio, ao delinear tantas tendências antropológicas, sociológicas, psicológicas, linguísticas e filosóficas até o momento, não é um texto alarmista, visto que não guarda semelhança com outros que pululam por aí, disseminados pelas redes sociais, as quais estão aqui justamente para serem criticadas em sua forma artificial de promover a convivência entre as pessoas, no que tange ao fenômeno das bolhas sociais. Nossa intenção é tão somente tecer uma constatação da realidade que nos cerca. Ou, para sermos menos combativos, um ponto de vista acerca de nosso zeitgeist atual.

Diante da evolução (ou involução) da humanidade nas últimas décadas, vivemos em um mundo cada vez mais amorfo, insípido, tecnocrata, uma sociedade baseada em números e estatísticas. O espírito humano continua sendo o mesmo, muito embora lance seus movimentos rumo a um estágio de colapso, progredindo em uma escala de apatia e insensibilidade. Não é preciso participar de um brainstorming para chegar a tais conclusões. Sobrevivemos em um universo “pós geração X”: estamos inseridos na era do consumismo tecnológico, do cinismo político, da ironia afetiva, do descompromisso e da frieza, enfim, uma espécie de deboche blasé da realidade que nos cercaÉ a chegada da era em que tudo e nada acontecem, em uma realidade enfadonha e, ao mesmo tempo, caótica, envolta, contudo, em um falso racionalismo, ou um racionalismo cego, acompanhado de um dogmatismo empedernido. Aos poucos, vamos nos robotizando. É uma imagem batida? Sim, há muito existe no imaginário popular pós-moderno, mas, infelizmente, vem se tornando real.

Infelizmente, os projetos grandiosos da filosofia desmoronaram nos últimos tempos. A própria ideia de “verdade”, que os gregos já perseguiam há mais de dois milênios, está sendo atacada por todos os lados, pelo menos nas últimas décadas. E sua essência, no mundo das bolhas sociais, vem sendo substituída pela verdade conveniente, mercadológica, qual seja, a pós-verdade. Computadores cada vez mais inteligentes, infinitas inovações tecnológicas, pós-estruturalismo, desconstrutivismo, infinitos “ismos” e outras “cositas más” pós-modernas acabaram, de igual forma, por contribuir para tornar o mundo caótico e obsessivo, na exata medida de tentarem compreender o caos e as obsessões dele. Parece ser um mundo novo, porém é a representação da velha ideia do cachorro que persegue o seu próprio rabo. O ser humano tenta, de mil maneiras, definir o que é ser “humano”, sem conseguir, todavia, adentrar sua própria essência.

Emergiu, supremo, o império da crítica à ideia de um tradicional racionalismo/empirismo que era tão caro ao Iluminismo e, voltando um pouco mais no tempo, ao conhecimento filosófico clássico. Nossa contemporânea era pós-estruturalista é como uma imensa Torre de Babel: há espaço para todos dentro dela, mas ninguém se entende. As ideias libertárias das três grandes revoluções da História (a fundamental Gloriosa, a assertiva Americana e a confusa Francesa) parecem ter sido misturadas a uma fumaça cinzenta onde se digladiam estruturas de poder, discursos de ódio, retórica identitária e ideologias oportunistas.

É um processo de negação de um pensamento de viés mais humanista que está em curso, minando as clássicas aspirações da filosofia a ter resposta para tudo. A sociedade vive hoje a era da especialização do conhecimento: para um dado problema, podemos encontrar a resposta utilizando alguma ferramenta específica da técnica ou da ciência. É tudo muito simples e superficial, como escolher um produto em uma prateleira de uma loja, ou como fazer compras pela internet. O grande impasse é que a técnica e a ciência não têm respostas para todas as questões que assolam uma sociedade extremamente angustiada. A própria ciência virou um mito. O seu endeusamento foi um tiro que saiu pela culatra: colocaram-na em uma redoma, como se o aspecto humano, de falibilidade, não pudesse sequer tocá-la. Husserl, em suas investigações filosóficas, já havia vislumbrado tal mito estulto. A Escola de Frankfurt, que nunca primou pela originalidade, ecoou a visão de Husserl tempos depois, com outra roupagem.

Após o século XX assistir boquiaberto à ascensão e declínio de regimes totalitaristas e coletivistas de direita e de esquerda, com todos os seus horrores nele embutidos, nosso atual mundo pós-moderno, ainda repleto de um cientificismo materialista exacerbado, é um arremedo de arcabouço político e institucional, um imenso entulho de leis, normas e regulamentos que reforçam incertezas e desigualdades. A democracia que foi prometida às massas virou uma espécie de populismo barato e demagogia vulgar embalados por “memes” de redes sociais e fake news – um espelho da ansiedade e decadência intelectual que tomou conta do mundo contemporâneo.

Presos em nossas bolhas, insones, perdidos no meio desta longa viagem na noite das incertezas, mas, ao mesmo tempo, seguros nos territórios de nossas redes sociais, agarramo-nos a pensamentos do tipo “ready made”, que definem, de forma caricata e uniforme, tendências políticas, grupos sociais, modos de agir, formas de pensar. As redes sociais e suas “bolhas” ideológicas que inviabilizam o diálogo dão o tom de monotonia da hodierna mente humana. Não há mais espírito crítico e ideias originais: como uma manada hipnotizada, seguimos o que a grande mídia dita, ou o que notáveis gurus de canais do Youtube pregam, enfim, o que é mais “cool” aos olhos de todos que nos cercam, seja isso, diga-se de passagem, com conotação progressista/esquerdista ou conservadora/direitista, o que nos faz, também, entrincheirarmo-nos em nossa guerra contra “o outro”, ou seja, aquele que pensa diferente de nós.

Diante desse novo mundo dominado pela inteligência artificial e a grande rede mundial de computadores, resta a pergunta: o homem manda nos algoritmos, ou os algoritmos mandam no homem? O ser humano ainda é, de fato, dono de seu próprio nariz? Até que ponto a indústria de software influência – ou monopoliza – nossas vidas?

A tecnologia avança a passos largos, as pequenas revoluções operam-se todos os dias. Eticamente, porém, o homem regride. Virou refém de um egocentrismo infindo. Nunca se viu tanta carência: queremos ser amados ao extremo, precisamos da aceitação imediata desse “outro”, ao mesmo tempo em que travamos uma guerra diária contra ele. E talvez esse seja mesmo um mundo irreal e, a um só tempo, tangível, digital na mente e analógico na alma: o mundo pós-moderno dos algoritmos dos computadores, da imensa confusão das redes sociais, do excesso de informação e da (des)informação sem filtro, dos pseudointelectuais e das subcelebridades da internet, do império das das fake news e da obsessão pela pós-verdade.

Ademais, por fim, imperioso é observar que o envolvimento das pessoas em bolhas sociais, principalmente naquelas disseminadas em redes sociais digitais, inebria, turva a visão, age sobre elas como o efeito de uma droga. E até mesmo os críticos de tais nichos virtuais, por mais que demonstrem seu desprezo por eles, não conseguem deles sair. Como um dia cantou David Gilmour, da célebre banda musical Pink Floyd, talvez muitos de nós, imersos em nossas bolhas digitais, estejamos “confortavelmente entorpecidos” (“comfortably numb”), neste mundo pós-moderno das fake news e da pós-verdade.

* Esta é a terceira parte de um artigo apresentado por este subscritor ao Mestrado em Filosofia da Universidade Federal da Paraíba, pelo Programa de Pós-Graduação da UFPB.

[1] Esta parte do artigo possui conexão com a série de pequenos artigos denominados pensatas, reunidos sob o título de Decadência da filosofia no mundo atual, também de autoria do autor deste ensaio e publicadas no site www.revistaculturae.com.br. Alguns trechos das citadas pensatas foram transcritos ipsis litteris nesta parte do presente artigo.

[2] Cf. Giddens, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editoria Unesp, 1991, p. 132 [Trad. de Raul Fiker].

Thiago Andrade Macedo: escritor infiltrado no serviço público federal, advogado não militante, autor do romance policial, psicológico e filosófico O Silêncio das Sombras, também atuou como articulista do jornal A União; filho de pernambucanos nascido nas Minas Gerais, atualmente é um ex-nômade radicado em João Pessoa, Paraíba.

E-mail: thiagojpam@yahoo.com.br