PARTE 2 – A sociedade pós-moderna: a era da “pós-verdade” *

Como já se frisou, entretanto, as bolhas sociais podem apresentar aspectos extremamente negativos. Em um mundo onde a polarização política e ideológica caminha a passos largos, onde o dogmatismo exacerbado e a arrogância epistemológica dão o tom em discussões acerca do nível do conhecimento coletivo, onde o nível de resistência das pessoas, com suas mentes fechadas, a mudarem de opinião aumentou bastante, uma suposta segurança promovida pela convivência de pessoas em bolhas sociais tem tornado a convivência social mais segmentada, seja em grupos “presenciais”, comunitários, seja em redes sociais da internet, isolando cada vez mais as pessoas em nichos específicos de relações sociais.

A sociedade pós-moderna converteu-se em uma espécie de era da “pós-verdade”, ou seja, uma época em que uma série de coisas que antes eram tidas como sagradas – como a proteção de uma imprensa livre e outros direitos fundamentais, ou até mesmo a crença no Estado Democrático de Direito – estão repentinamente sob ataque[1]. Devido ao caráter obsessivo do mundo contemporâneo, nos últimos tempos, a política passou a dominar todo o debate na sociedade. Isso tem colocado em xeque a ciência, embora não se queira dizer que toda ciência seja política ou que tenha agora conotação política. Em vez disso, é necessário observar que, na imaginação popular e em diversas bolhas sociais, as conclusões científicas sobre certos tópicos – como mudança climática, evolução, sobre se as vacinas causam autismo (!) e até mesmo se a Terra é redonda (!) – de repente se tornaram fontes de desacordo ideológico aberto, em vez de questões a serem discutidas, ainda que ridiculamente discutidas, em certos cenários.

Algumas dessas disputas foram motivadas por interesses comerciais, outras por política partidária e mais outras por crenças religiosas ou de qualquer outro tipo, porém, em todos os casos, há um fenômeno curioso pelo qual uma minoria perturbadora de nossa população – que, em determinadas bolhas, dá a impressão de ser uma maioria, pela veemência com que expressa suas supostas convicções -, parece disposta a substituir o julgamento de especialistas pelo seu próprio julgamento não instruído, com base apenas no fato de uma determinada descoberta científica entrar em conflito com uma crença motivada que eles prefeririam manter.

A despeito do consenso esmagador sobre determinados assuntos dentro da comunidade científica, ainda existe uma profunda clivagem entre os cientistas e uma parcela substancial do público leigo, principalmente quando esse público está inserido em uma bolha social. A ciência certamente tem seus apoiadores, entretanto muitos que estão “do outro lado”, imersos em suas bolhas, em seus grupos fechados, estão dispostos a entregar-se ao viés de confirmação e ao raciocínio motivado quando seus compromissos ideológicos entram em conflito com as descobertas bem corroboradas da ciência. É, portanto, algo a se notar, com bastante atenção, que, ironicamente, mesmo aqueles sem qualquer treinamento científico podem votar, e seus representantes no governo muitas vezes refletem suas opiniões, a ponto de interferir nas políticas públicas. E o peso exercido, em tal cenário exposto, pelas redes sociais e suas bolhas é avassalador.

Tanto isso é verdade que análises acerca do perfil contemporâneo da política, feitas há poucos anos, a nosso ver, caíram por terra. Certos pareceres e juízos de valor não fazem mais sentido. Tome-se como exemplo uma notável conferência de 1999[2], na qual o proeminente sociólogo francês Pierre Bourdieu tentou pensar sociologicamente a política, analisando-a através do conceito de campo. Sua visão sobre o fenômeno político em nossos dias era bem interessante: ele contrapunha à suposta igualdade formal própria da seara política uma desigualdade real de acesso ao campo. À vista disso, dentro de sua concepção, haveria uma minoria de “profissionais” que participaria do campo político e uma massa de “profanos” que não encontraria legitimidade social para a ação política, com tendência, dessa forma, a interiorizar e naturalizar sua própria impotência. O campo político, no entanto, nunca se autonomizaria por completo, porquanto, em suas lutas internas, haveria sempre o peso das “clientelas”, que lhe seriam externas e poderiam ter a palavra final nessas disputas.

Todavia, para Bourdieu, tal fenômeno se intensificaria, através de uma espécie de evolução no sentido de uma autonomia crescente. Em certo trecho da conferência, ele vaticina: “Tendo dito isso, o que fiz foi apenas relembrar as condições sociais do funcionamento do campo político como um lugar em que certo número de pessoas, que preenchem as condições de acesso, joga um jogo particular do qual os outros estão excluídos. É importante saber que o universo político repousa sobre uma exclusão, um desapossamento. Quanto mais o campo político se constitui, mais ele se autonomiza, mais se profissionaliza, mais os profissionais tendem a ver os profanos com uma espécie de comiseração.” E continua, em outro trecho mais adiante: “Assim, o fato de o campo político ser autônomo e ter sua lógica própria, lógica que está no princípio dos posicionamentos daqueles que nele estão envolvidos, implica que existe um interesse político específico, não automaticamente redutível aos interesses dos outorgantes do mandato. Há interesses que se definem na relação com as pessoas do mesmo partido ou contra as pessoas dos outros partidos. O funcionamento do campo produz uma espécie de fechamento. Esse efeito observável é o resultado de um processo: quanto mais um espaço político se autonomiza, mais avança segundo sua lógica própria, mais tende a funcionar em conformidade com os interesses inerentes ao campo, mais cresce a separação com relação aos profanos.”

Impressiona como uma leitura dessa envergadura, levada a cabo em 1999, já se encontra praticamente datada, haja vista o enorme avanço das redes sociais e seu poder de influenciar pessoas. Hoje, pouco mais de duas décadas depois da interpretação sociológica de Bourdieu do fenômeno da política dentro do conceito de campo, em que pese a existência de políticos profissionais que continuam utilizando seu eleitorado como massa de manobra, como mera clientela, é inegável que a sua preocupação em não desagradar seus seguidores em perfis de redes sociais agora é algo que faz parte do jogo político. Governa-se cada vez mais para o mundo digital, muito embora algumas ações virtuais nem sempre correspondam a ações no mundo real. Por conseguinte, há políticos cada vez mais esdrúxulos para um público cada vez mais excêntrico.

Exemplos claros disso são discussões, há algum tempo inimagináveis, que agora vêm à tona, em vários parlamentos, acerca de temas já praticamente esgotados, mas quase sempre com apresentação de novas “provas” contra: o aquecimento global, por ser uma “farsa chinesa”; contra a eficácia de vacinas; contra as mudanças climáticas do planeta; contra o desmatamento nos quatro cantos do globo terrestre, entre outros.

Por outro lado, a polarização ideológica sobre temas empíricos é perigosa, ao passo que a aferição da verdade por meio de pesquisas de opinião pública acerca de tais temas é ridícula, pois muitas vezes é baseada em vícios epistemológicos, tais como “achismos”, reducionismos, preconceitos, ociosidade, dogmatismos e arrogância intelectual, os quais revelam, na maioria das vezes, o “comportamento de manada” típico das bolhas sociais.

Por parte de tais pessoas, não há comprometimento com a verdade. E muitos mentem, ao passo que outros têm apenas uma atitude que seria uma espécie de “descaso epistêmico”. Sobre essa temática, é interessante trazer à baila um trecho do ensaio Sobre a conversa fiada (On Bullshit)[3], de Harry Frankfurt, transcrito por Quassim Cassam em seu artigo Descaso epistêmico[4] : “É impossível mentir a menos que se pense que se sabe e verdade […] Uma pessoa que mente responde por isso à verdade e nessa medida respeita-a. Quando um homem honesto fala, só diz o que pensa que é verdadeiro; e para o mentiroso é paralelamente indispensável que considere que as suas afirmações são falsas. Para quem fala asneiras, porém, não há quaisquer garantias de coisa alguma: não está do lado do verdadeiro nem do falso. Não tem de modo algum o olho nos fatos, como acontece com o homem honesto e com o mentiroso, exceto na exata medida em que forem pertinentes para o seu interesse em safar-se com o que diz. Não se importa se as coisas que diz descrevem ou não a realidade corretamente”.

Nota-se, outrossim, nesse mesmo cenário de conversas e interações, uma espécie de confirmação do “efeito Dunnig-Kruger”[5], que é aquele segundo o qual existe um viés cognitivo em que pessoas com baixa habilidade em uma tarefa superestimam sua habilidade. Nas bolhas sociais, tal comportamento, a depender da tese que determinado grupo queira sustentar, parece ser uma constante, visto que o referido efeito, pelo exposto, pode ser definido como a tendência de pessoas com baixa habilidade em uma área específica para darem avaliações excessivamente positivas dessa habilidade, o que é frequentemente entendido como um viés cognitivo, isto é, como uma tendência sistemática de se envolver em formas errôneas de pensar e julgar, o que pode denotar também a existência de vícios epistemológicos. Os vieses são sistemáticos no sentido de que ocorrem consistentemente em diferentes situações. São tendências, pois dizem respeito a certas inclinações ou disposições que podem ser observadas em grupos de pessoas, mas não se manifestam em todos os desempenhos. 

No caso do efeito Dunning-Kruger, tais definições se aplicam principalmente a pessoas com baixa habilidade em uma área específica que tentam avaliar sua competência dentro dessa área. Nesse ambiente epistêmico, o erro sistemático diz respeito à sua tendência de superestimar sua competência ou de se considerar mais habilidosas do que são. Alguns pesquisadores enfatizam o componente metacognitivo em sua definição. Dessa maneira, o citado efeito seria a tese de que aqueles que são incompetentes em uma determinada área tendem a ignorar sua incompetência, ou seja, não têm a habilidade metacognitiva de se dar conta de sua incompetência. Essa definição se presta a uma explicação simples do efeito: a incompetência muitas vezes inclui a incapacidade de distinguir entre competência e incompetência, razão pela qual é difícil para os incompetentes reconhecer sua incompetência. 

Por vezes, essa percepção da realidade é chamada de “relato de carga dupla” (dual-burden account), uma vez que que duas cargas estão emparelhadas: a falta de habilidade e a ignorância desta falta. O efeito Dunning-Kruger é relevante para vários assuntos práticos. Pode levar as pessoas a tomarem más decisões, como escolherem uma carreira para a qual não são aptas ou se envolverem em comportamentos perigosos para si mesmas ou para outros por não terem consciência de que lhes faltam as habilidades necessárias, bem como a emitirem opiniões categóricas sobre temas com relação aos quais não possuem um mínimo de conhecimento intelectual para lançarem tais afirmações, agindo, em vista disso, de forma arrogante, rasa e superficial. Também pode inibir os afetados de abordarem suas deficiências para melhorarem a si mesmos, fechando a mente de tais pessoas para qualquer tipo de mudança de atitude diante de vários assuntos.

Em tal conjuntura, contudo, como remediar tamanha ignorância e fragmentação? Uma das principais barreiras ao tipo de confiança, engajamento e semelhança de crença que precisamos ter para derrotar a negação da ciência se devem à arrogância. E, notavelmente, alegações de falta de humildade são feitas – com alguma justificativa – por ambos os lados. Os cientistas, por exemplo, muitas vezes afirmam que não vale a pena conversar com os negadores da ciência, porque eles são tão arrogantes que, fechados em suas bolhas, pensam que: mesmo sem treinamento, seu próprio conhecimento é superior ao dos cientistas; em sua visão distanciada da realidade científica, os cientistas têm interesse político ou financeiro em suas pesquisas, o que as corrompeu; os negadores da ciências são, na verdade, em seu “solipsismo epistêmico”, de certa forma, “mais científicos do que os cientistas”, porque eles estão pelo menos dispostos a considerar hipóteses alternativas; apesar da falta de treinamento, os negadores da ciência, novamente em sua concepção fechada acerca do mundo, descobriram, de alguma forma, uma verdade que todos os outros perderam.

Os negadores da ciência, a seu turno, costumam afirmar que são os cientistas que são insuportavelmente arrogantes, porque eles: insistem que já saber a resposta; não consideram os dados, a menos que sejam fornecidos a eles por outros cientistas; descartam qualquer desafio ao seu trabalho como irracional ou ideologicamente motivado; não vão admitir que podem estar errados; não entrarão em debate, obviamente, com negadores da ciência.

O que há dentro das bolhas sociais, no campo da lógica e da epistemologia, é impressionante. Uma das afirmações mais interessantes de estudos dos negadores da ciência nos últimos anos é que todos eles seguem a mesma estratégia de raciocínio, que envolvem táticas comuns, tais como: crença em teorias da conspiração; evidências escolhidas a dedo; confiança em especialistas falsos (e eliminação de pareceres de especialistas reais); o cometimento de erros lógicos; o estabelecimento de expectativas impossíveis sobre o que a ciência deveria ser capaz de alcançar.

No plano das bolhas sociais, é importante lembrar que existe um caminho evolucionário na criação de negadores da ciência. Eles podem começar na ignorância ou na confusão, porém, com um pouco de encorajamento e desinformação, eles podem facilmente ser levados à negação total. Esse é certamente um dos efeitos nocivos de nossa mídia polarizada; é também o resultado da internet e da mídia social não filtrada, onde é possível encontrar reforço social e aprovação dos colegas do mesmo grupo para praticamente qualquer crença alternativa que alguém queira postular. Por conseguinte, não é à toa que grupos formados em redes sociais por pessoas que pensam de maneira parecida têm obtido bastante espaço em discussões políticas e ideológicas em toda a sociedade, seja disseminando fake news, seja alimentando formas de pós-verdade. 

 

* Esta é a segunda parte de um artigo apresentado por este subscritor ao Mestrado em Filosofia da Universidade Federal da Paraíba, pelo Programa de Pós-Graduação da UFPB.

[1] A partir deste trecho, serão abordadas algumas temáticas presentes no capítulo 12 (contendo texto de autoria de Lee McIntyre) da obra Polarisation, Arrogance,  and Dogmatism, editada por Alessandra Tanesini e Michael P. Lynch, em publicação da Routledge, no ano de 2021, em Abingdon, Oxon; e  New York, NY.

[2] Há uma versão em português desta conferência publicada in Revista Brasileira de Ciência Política, nº 5, 2011, tradução de André Villalobos (Bourdieu, Pierre, Conference: Le champ politique. Propos sur le champ politique. Lyon, PUL, 2000).

[3] Frankfurt, Harry. On  Bullshit. Princeton:  Princeton  University Press, 2005, p. 55-56.

[4] Artigo publicado no “Journal of Philosophical Research”, vol. 43 (2018), pp. 1–20. A citação do trecho transcrito de Frankfurt encontra-se na página 3. A tradução do texto é de Desidério Murcho.

[5] David Alan Dunning é um psicólogo social norte-americano e professor de psicologia na Universidade de Michigan; Justin S. Kruger é um psicólogo social norte-americano e professor da New York University Stern School of Business.

Obs.: Devido a certas características de configuração desta página, citações com mais de três linhas utilizadas no texto acima não seguiram as exigências estabelecidas pelas atuais normas da ABNT.

Thiago Andrade Macedo: escritor infiltrado no serviço público federal, advogado não militante, autor do romance policial, psicológico e filosófico O Silêncio das Sombras, também atuou como articulista do jornal A União; filho de pernambucanos nascido nas Minas Gerais, atualmente é um ex-nômade radicado em João Pessoa, Paraíba.

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