PARTE 1 – O homem como animal político, social e cultural*

É cediço afirmar que, para Aristóteles, o homem é um sujeito social que, por sua própria natureza, precisa pertencer a uma coletividade, necessitando do convívio social. Por ser comunitário, agregador e, por assim dizer, solidário, o homem, por também ter o dom da linguagem e do pensamento, é um animal político, como bem o define o pensador estagirita em sua Ética a Nicômaco[1].

Dessa noção de vida partilhada na polis, Aristóteles levanta a tese de que o homem, dono da palavra (logos), é o único ser com capacidade discursiva, sendo, portanto, capaz de, através de uma linguagem complexa, transmitir aos outros o seu pensamento sobre a realidade e o que pode nela ser transformada, objetivando alcançar o bem comum[2]. Logo, a linguagem definiria a natureza humana, na medida em que o homem é um ser social, sendo exatamente o uso da linguagem na comunicação e na negociação política o que possibilita a vida social.

Após um salto gigantesco, do animal político aristotélico de quase quatro séculos antes de Cristo, chega-se, em pleno século XX, ao conceito de homem-massa[3] de Ortega y Gasset, que é o homem sem opinião, manipulável ao extremo por uma chamada “opinião pública” às vezes invisível, o homem que simboliza a maioria dos homens contemporâneos, que pode se travestir até mesmo de militante fanático, de extremista ou de fundamentalista, a depender das circunstâncias.

Do homem-massa, pula-se para a era digital, o mundo das redes sociais, dos celulares, dos computadores e da inteligência artificial, onde o homem sente novamente a necessidade de formar grupos e de expor seu pensamento, no universo virtual de comunicação. Ocorre que, neste novo status quo, uma espécie de “anonimato” seguro e anestesiante faz com que o homem-massa, que também é um ator político, seja mais corajoso e contundente em sua argumentação, ao passo que se esconde nas chamadas “bolhas sociais”.

Sob outro ângulo de análise, mais social e cultural e menos político, pode-se observar que, na antropologia e no mundo da linguística, segundo a célebre hipótese Sapir-Whorf[4], a língua de uma determinada comunidade organiza sua cultura, sua visão de mundo, visto que uma comunidade vê e compreende a realidade que a cerca através das categorias gramaticais e semânticas de sua língua. Por conseguinte, há uma interdependência entre linguagem e cultura, que estão intrinsecamente ligadas, sendo a linguagem um guia para a realidade social, uma grande força de socialização, provavelmente a maior que existe. Por esse prisma, o homem tende a se enquadrar socialmente em um ambiente que acolha, na esfera cultural, a sua linguagem, que é a expressão de seu pensamento sobre a realidade, sobre o mundo que o cerca. Por alguns chamada de hipótese do relativismo linguístico, tal construção teórica defende que cada língua segmenta a realidade de um modo peculiar, impondo a todos os seus falantes tal segmentação.

A partir do século XX, após a publicação de Curso de linguística geral, de Ferdinand de Saussure, nota-se que as pesquisas linguísticas passam a se dividir em dois grandes polos: o polo formalista e o polo funcionalista. O primeiro enfatiza a ideia de língua como sistema e estrutura. Já o segundo, que interessa mais ao presente estudo, vai em direção ao paradigma funcional, cujo foco está dentro de uma perspectiva sociointeracionista, privilegiando o uso da língua em situações reais de comunicação, colocando em evidência os aspectos sociais, culturais e antropológicos da linguagem. Dentro desse paradigma, pode-se destacar as seguintes escolas da linguística: a sociolinguística, a sociolinguística interacional, o funcionalismo, a linguística sociocognitiva, a análise do discurso, a pragmática (que será abordada mais adiante) etc. Cada uma delas, a seu modo, abarca a língua em seu contexto de uso, observando as interações face a face entre falante e ouvinte, as influências sociais e psicossociais na estrutura da língua, a ideologia, a construção da subjetividade, os atos de fala, as implicaturas conversacionais, entre outros elementos.

Em outra linha de abordagem, verifica-se que linguagem, pensamento e realidade estão umbilicalmente conectados, se levarmos em consideração a filosofia analítica de Gottlob Frege, Bertrand Russell, George Edward Moore e Ludwig Wittgenstein, apenas para citar nomes iniciais e mais proeminentes desse ramo filosófico. Entre eles, pode-se dar mais destaque a Wittgenstein, filósofo austríaco naturalizado britânico que rompeu com a concepção tradicional de que a língua tem a função de designar seres – uma tradição que se impunha desde o diálogo Crátilo, de Platão, na Antiguidade, e iniciou uma discussão que atravessou o pensamento da Idade Média (com a discussão acerca do “problema dos universais”), da Idade Moderna e veio desaguar, contemporaneamente, nos estudos de semiótica do pensador norte-americano Charles Sanders Pierce, bem como nos estudos de semiologia[5] e linguística do já citado linguista suíço Ferdinand de Saussure.

Para Wittgenstein, na chamada segunda fase de sua filosofia, é a língua que cria os objetos, e não o contrário. Consequentemente, o significado da palavra está associado ao uso da língua, que, a seu turno, é socialmente coordenado e regulado, ou seja, totalmente ligado a um sistema de práticas, valores, crenças e interesses a ele vinculados. É daí que surge a pragmática linguística, em que a linguagem assume uma dimensão social em seu uso, profundamente ligada à filosofia da linguagem (com suas derivações mais atuais, nas últimas décadas, através de pensadores como John Langshaw Austin, Gilbert Ryle, Peter Strawson, John Searle e Daniel Vanderveken, com o desenvolvimento filosofia da linguagem natural, da teoria dos atos de discurso e, pari passu, da lógica ilocucionária, ou seja, a teoria lógica dos atos ilocucionários), ao pragmatismo filosófico (seguindo uma tradição mais empírica e anglo-saxônica) e à semiótica. É importante frisar que a pragmática linguística, portanto, nasce com a ideia de signo, bem como das relações deste com outros elementos de linguagem em vários âmbitos.

Dessa forma, levando-se em consideração as diferentes visões já abordadas, há uma relação de interdisciplinaridade entre vários ramos do conhecimento humano (filosofia, antropologia, sociologia, semiótica, linguística etc.), ao investigar o fenômeno da linguagem e a forma sociointeracionista utilizada pelo homem para se comunicar com seus pares em seus mais variados grupos sociais. Dentro desse universo de interação social através da linguagem e seus diferentes usos, a bolha social surge para acolher o homem em seu desejo natural de se sentir seguro, útil, respeitado e identificado com seus pares. Voltando ao terreno da linguística, tal comportamento é perfeitamente descrito e abordado pelas correntes da sociolinguística e do funcionalismo, que levam em consideração as relações entre a estrutura linguística e os aspectos sociais e culturais da produção linguística, dentro da perspectiva da comunicação humana. À vista disso, com supedâneo nas visões anteriormente elencadas sobre o fenômeno, aduz-se que a formação de bolhas nos mais distintos grupos sociais é algo indissociável do DNA humano, isto é, não se pode escapar de tal conduta.

Em termos sociológicos e psicológicos, a ideia de uma bolha representa uma demarcação de espaço, com o fito de se proteger e se distanciar do meio externo. À vista disso, uma bolha social pode ser entendida como um grupo de pessoas que se unem por interesses semelhantes, terminando por excluir de seu convívio a participação de quem tem pensamentos contrários aos seus. Tal conduta limita as relações sociais e, de certa maneira, protege o grupo, mantendo um certo equilíbrio. Afinal, há pouca margem para o conflito ou para a discordância, o que é bom, sob o aspecto da aceitação social de cada um no grupo, todavia possui efeitos bastante nefastos, quando se analisa a realidade de maneira holística, sem fragmentação, em uma conjuntura sociocultural na qual as pessoas precisam debater temas de interesse geral, sejam eles de natureza política, econômica etc., sejam eles referentes ao próprio avanço da ciência e do conhecimento, dentro de uma linha epistemológica de abordagem. Sob esse prisma, a bolha ilude seus membros sobre a natureza da realidade, não obstante servir de base para que todos continuem vivendo e interagindo entre si.

Na concepção de Kierkegaard[6] acerca da existência e da psicologia humanas, ser quem se é realmente seria na verdade o contrário do desespero, uma vez que o ser não precisaria tornar-se algo diferente do que ele já seria. Nessa perspectiva, o grau de identificação entre pessoas pertencentes a uma mesma bolha social é enorme, pois todas geralmente tendem a concordar entre si, em relação a variados temas, sem necessariamente terem que fingir ou dissimular, ou seja, tais pessoas estão sendo quem elas mesmas são e ainda estão tendo, para isso, a aceitação social, psicológica e emocional de todo um grupo. Essa visão se encaixa perfeitamente na concepção que o psicólogo B. F. Skinner tinha do behaviorismo, cujo objetivo seria eliminar todo tipo de coerção, transformando o ambiente e ajustando o que nos controla. Além disso, como bem observou Vygotsky em seu construtivismo social, nossa identidade é construída pela relação com os outros. Na mesma linha, Albert Bandura, em sua teoria de aprendizagem social, sustentou que a maior parte do comportamento humano é aprendida por imitação. Isto posto, atualizando as visões de Vygotsky e Bandura, as bolhas sociais talvez sejam o lugar mais confortável para o gênero humano conviver em sociedade.

 

* Esta é a primeira parte de um artigo apresentado por este subscritor ao Mestrado em Filosofia da Universidade Federal da Paraíba, pelo Programa de Pós-Graduação da UFPB.

[1] Em sua obra Política, Aristóteles afirma que: “A polis faz parte das coisas naturais e que o homem é por natureza um animal político”. Aristóteles, Política. São Paulo, Edipro, 2019, Livro I, p. 33 [Trad. de Maria Aparecida de Oliveira Silva].

[2] Dessa maneira, a política, ou melhor, a ação política, que significa “ação que visa o bem comum”, pode ser posta em prática por todos os cidadãos, ou melhor, os políticos (filhos da Polis).

[3] Cf. Ortega y Gasset, José. A Rebelião das Massas. Campinas, SP: Vide Editorial, 2016 [Trad. de Felipe Denardi].

[4] Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf foram dois linguistas e antropólogos norte-americanos que, profundamente influenciados por Humboldt, Herder, Vico e Franz Boas, formularam, na primeira metade do século XX, a chamada hipótese Sapir-Whorf, isto é, uma construção teórica baseada na correlação entre a linguagem de uma determinada sociedade e sua visão de mundo, demonstrando, desse modo, que essa visão é relativa a traços característicos da língua de um determinado povo.  

[5]  Na tradição saussuriana, denominação que constitui uma tradução do francês sémiologie e substitui a semiótica (de semiotics, em inglês), termo oriundo da tradição iniciada e desenvolvida nos Estados Unidos por Charles Sanders Pierce.

[6] Tal concepção é uma das molas mestras da obra fundamental do pensador dinamarquês Sören Kierkegaard, O Desespero Humano. São Paulo: Martin Claret, 2002 [Trad. de Alex Marins].

Thiago Andrade Macedo: escritor infiltrado no serviço público federal, advogado não militante, autor do romance policial, psicológico e filosófico O Silêncio das Sombras, também atuou como articulista do jornal A União; filho de pernambucanos nascido nas Minas Gerais, atualmente é um ex-nômade radicado em João Pessoa, Paraíba.

E-mail: thiagojpam@yahoo.com.br