Ele era um simples professor. Professor de escola primária daquele tempo. Há mais de cinquenta anos. E foi o meu Professor. Por quatro anos, a última série conclusa em 1951. Seu nome, Artur Pedro Schuh.

Não sei qual a formação profissional que possuía. Se é que possuía alguma. Nem onde estudou, nem o que estudou. Só sei, lembro, que ficou muito orgulhoso quando soube que eu passara da primeira para a segunda série ginasial.

─ Estão vendo esse guri? ─ disse ele, apontando-me, peito inflado, parado em roda de pessoas, diante da capela. Depois de algum suspense, solene: ─ Esse guri já sabe mais do que eu.

Eu estava em minhas primeiras férias de estudante ginasiano. Interno, em   Cerro   Largo, no Seminário. Era a opção mais próxima, Roque Gonzales só possuía escola primária, de primeira à quarta série. A ida ao Seminário era uma abertura de horizontes. Eu abria caminhos, perseguia livros e estudos que estavam além das primeiras letras do modesto Professor. Que, no entanto, impava de orgulho:

Esse guri já sabe mais do que eu.

Quanto o meu Professor sabia, eu não sei. Mas não podia ser muito, não. Menos até; muito pouco, sim. Um dia, não lembro a troco de que, em aula, saí-me com essa:

─ Professor, Jerusalém é masculino ou feminino?

Jamais esqueci o olhar que me lançou ─ eu o fitava no momento da pergunta. Até hoje enxergo a angústia, o desespero, o abandono que perpassou aquele olhar. O Professor tinha olhos escuros e estes ainda mais escureceram com a palidez que invadiu o rosto.

Jerusalém? ─ ele balbuciou.

Não lembro se confirmei a pergunta, se acenei que sim, ou não, não lembro mesmo o que fiz. Só guardo, aqui dentro, os olhos aflitos do Professor, o gesto hesitante, a voz indecisa:

Masculino.

Isto aconteceu há exatos cinquenta anos e eu cursava a última série do curso primário. Lembro a data porque recordo até o local onde eu sentava, na escola. Era na velha capelinha de Roque Gonzales, ao lado da hoje imponente Igreja Matriz, na fila à direita, o banco mais recuado, primeiro lugar junto ao corredor. Sentava-se em bancos de madeira e as carteiras serviam para quatro alunos. O lado direito do corredor era para os alunos do sexo masculino e o assento no banco, a partir do corredor em direção à parede, indicava a classificação escolar de cada um. Pelo visto, percebe-se que, na ocasião, eu ocupava o primeiro lugar da classe.

Registro o detalhe por causa de outra lembrança indelével. Aconteceu no mesmo ano, certa manhã, depois do recreio. O uso da vara era instrumento pedagógico normal e, antes do recreio, o Professor tinha avisado:

─ Ninguém se atrase no fim do recreio. Quando tocar a sineta, todos em fila. Quem se atrasar, ó, vara!

Lembro-me que brincamos com umas carretinhas de quatro rodas, em que a gente senta na tábua que liga os dois eixos e guia com os pés, movendo o eixo dianteiro. Ainda hoje existem por aí, vejo-as a toda hora. Na brincadeira, descíamos a rampa que declinava pela hoje Rua Monsenhor Wolski, desde a Rua Pe. Anchieta até a Avenida Pirapó. Uma quadra de pura festa.

De repente, ouvi a sineta. Em plena descida de rampa, como parar? Fui ao fim, voltei, cheguei atrasado. O único. E a primeira vez em toda a minha vida de escola. Justamente naquele dia, com tamanho e tão claro aviso.

Entrei, vexado. Acheguei-me ao assento, desajeitado, meio de lado, cuidando o traseiro. Silêncio de cemitério. O Professor aproximou-se, vara em punho.

Estaria o Professor vexado, mais vexado que eu? Olhou-me, olhou ao redor, os olhos todos fincados nele. O silêncio doía, de tão grande. Eu nunca fora castigado, seria agora?

A justiça tinha que ser feita e a vara desceu. Arranquei-me para frente, em defesa, e a vara bateu no assento do banco, mal roçando minhas costas. O Professor parece que sentiu um alívio, descontraiu a face e baixou a vara mais duas vezes… no banco. Piscou-me um olho e saiu caminhando altivo, sobranceiro. Os alunos voltaram-se para suas atividades, satisfeitos, a pena fora aplicada. E eu ouvia passarinhos.

O Professor finou-se, há muito. Sua imagem permaneceu-me viva, sempre. Aqui, diante de mim, ante meus olhos. Toda a vez que enfrento o espelho, lembro-me dele. O meu modo de pentear o cabelo denuncia o velho Professor. Como ele, puxo o cabelo para trás, da testa para a nuca. Por imitação.

Antes, quando criança e na escola, eu penteava o cabelo partido ao meio, apartado um pouco mais ao lado esquerdo e puxado para a direita. A troca, o penteado da frente para trás, aconteceu quando já longe de casa, no Seminário, em lembrança ao Professor. Afinal, fora ele quem aconselhara meu pai a encaminhar-me ao estudo. Eu ali estava, por ele. Adolescente, troquei o visual, homenageei o Professor e marquei-me para sempre.

E ele não passava de um simples Professor. Tão simples que penteava o cabelo para trás e não sabia qual o gênero da palavra Jerusalém. E ainda, quando preciso, apelava para a vara.

Mas, era Pro-fes-sor!   

Nelson Hoffmann: escritor, professor, advogado e filósofo gaúcho, autor de vasta obra literária, com destaque para a série de livros protagonizada pelo detetive policial João Roque Landblut, também é profundo estudioso da história do Rio Grande do Sul, da cultura indígena e da região das Missões.

E-mail: nelson.hoffmann@yahoo.com.br