Muitos de nós, fãs de Gilberto Gil, que fomos à apresentação do artista, quinta-feira passada, no Centro de Convenções de João Pessoa, já estamos conseguindo ter, no entardecer dos anos cinquenta de nossas existências, uma relação mais sossegada com o tempo, assim como ele. Uma conexão mais tranquila, é verdade, embora ainda permeada de medo, tanto das surpresas desagradáveis que a vida nos oferece como, principalmente, da metafísica passagem.

Gil é um deus do nosso tempo. Os cabelos brancos e a fragilidade física, por exemplo, são indícios do sol da impermanência cujos reflexos já chegaram até nós. Vendo-o assim, tão próximo de nossos pais, sentimo-nos descer pelo mesmo rio, ora calmo, ora caudaloso, e intuímos um cais mais à frente, embora ainda sem forma e calendário. No programa, a entidade deu notícias do humano percurso; de como conseguiu escapar de perigosas cachoeiras.      

Muitos de nós esperávamos ver, ouvir e sentir exatamente aquilo que, durante todo o espetáculo, Gil nos ofereceu. Uma filosofia de vida construída com as pedras e a argamassa da compreensão/aceitação, no que se refere a semelhanças e diferenças. Uma alma que, generosa e corajosamente, desnuda-se para o outro, permitindo-lhe percorrer essa catedral, de estranha arquitetura, ora luz, ora trevas, ora beleza, ora horror, dentro da qual correm sangue e sonhos.

Neste mundo em ebulição, novamente movido por duas poderosas forças antagônicas, que se digladiam e se retroalimentam, Gil busca a serenidade; a possibilidade de manifestar contentamento com os acertos humanos, e de gritar insatisfação contra as diversas formas de poder que explora, humilha e mata seus iguais. Age, porém sem desestruturar a harmonia de seu universo particular, onde familiares e amigos são astros de maior luminosidade.

“Deixem o poeta beber vento”. Este verso, do poeta paraibano Mané Caixa d’Água, “declamado” em dois momentos por um Gil sorriso apenas, funcionou como uma espécie de epígrafe de “Ok ok ok”, título da sessão musical que o artista levou ao Centro de Convenções. Permitam ao músico tocar, cantar e dançar. Guardem as pedras de seus dissabores para outros cristos. Consintam o afeto poético, o afago melódico, o abraço rítmico, o diálogo amigável.

Gil armou-se apenas de competência em sua nova performance musical. Uma banda extremamente afinada, em todos os sentidos, dividida em quatro seções – cordas, percussões, sopros e teclados -, com o apoio luxuoso, nos vocais, da filha Nara. Em idas e vindas pelos mares do tempo, cantou sambas e bossas, novas e velhas canções, até colocar a plateia para dançar, corpo e alma enfim libertos, ao som dos metais pesados (regues e roques) do seu repertório.

A sutileza do protesto político pareceu evidente no rosa do “pijama” que vestia Gil sem ostentação. Retrato de quem saiu do quarto de dormir agorinha, para abrir a porta da casa a um amigo. Imagem, aliás, de quem ainda está de cama, inspirando cuidados especiais. Um ser sossegado, senhor de dons que fazem bem, não é o emblema oposto do poder personificado, no Brasil atual? Gil optou pelas flores (bom não esquecer que elas também têm espinhos).

Outros de nós, infelizmente, não entenderam as mensagens das garrafas multicoloridas dos mares de Gil. Não se deixaram impregnar pela atmosfera íntima da surpreendente navegação. Não permitiram ao espírito desanuviar a si próprio com o sol das inéditas canções; o vento das inauditas lições. Como estátuas solitárias, paralisadas em ilhas do pretérito, reclamaram em silêncio da ausência de sucessos decorridos, aspirando um Gil que não existe mais.

William Costa: jornalista de carreira e escritor paraibano, editor do suplemento cultural Correio das Artes, cronista do jornal A União, tem vasta experiência em veículos de imprensa e é autor do livro de crônicas e contos Para tocar tuas mãos - Chronesis.

E-mail: wpcosta.2007@gmail.com