Venero Shakespeare, por isso prefiro pensar que é seu personagem Macbeth – e não ele – que diz isto:

– A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, que não significa nada! (Life is a tale / Told by an idiot, full of sound and fury, / Signifying nothing.)

Endeuso Augusto dos Anjos, mas também não concordo com ele, nestes versos:

… quando, ao cabo do último milênio,
A humanidade vai pesar seu gênio
Encontra o mundo, que ela encheu, vazio.

Não comungo, também, com os existencialistas. Lembro-me que no final dos anos 80, levei minha peça “A Verdadeira Estória de Jesus” para o Festival de Teatro de Sorocaba, onde também se apresentou um senhor espetáculo vindo de Natal, texto de Ionesco, e de que eu, na minha falação, disse:

– Maravilhoso trabalho, o dos companheiros do Rio Grande do Norte: grandes atores, direção perfeita, deslumbrante trilha sonora do Danilo Guanais. Mas… a diferença básica de meu texto, para o do dramaturgo romeno existencialista, é que em meu trabalho procuro compreender o que estamos fazendo aqui, porque não vejo absurdidade no mundo, mas uma gigantesca complexidade que vamos, sim, dominando aos poucos.

Segundo a definição de Esslin – criador do Teatro do Absurdo , a ideia é a de que esse teatro busca

– … expressar o sentido do sem sentido da condição humana, e a inadequação da abordagem racional, através do abandono dos instrumentos racionais e do pensamento discursivo e o realiza através de ‘uma poesia que emerge das imagens concretas e objetificadas do próprio palco’. (The Theater of the Absurd strives to express its sense of the senselessness of the human condition and the inadequacy of the rational approach by the open abandonment of rational devices and discursive thought, and it does so through ‘a poetry that is to emerge from the concrete and objectified images of the stage itself’.)

Discordo. Em meu romance “Relato de Prócula”, um personagem meu diz a outro, que tentara o suicídio por não ver sentido em nada:

– Os pés têm finalidade? E o coração? Pulmões? O aparelho reprodutor? Os olhos? Ouvidos? Nariz? Bem, se cada parte do corpo tem lógica e objetivo claro, acreditar que o conjunto é absurdo, não é absurdo? Pra que serve o cérebro? Pra pensar? Então pensemos!

A impressão de falta de sentido da vida vem de uma visão parcial da lei da causa e efeito. Aristóteles me fascina por ver, em tudo, uma “causa eficiente” e uma “causa final”. A causa eficiente da nuvem é a evaporação. A final, chuva. Os hormônios são a causa eficiente do ato sexual, a final (tendo o gozo como isca), o bebê. Vive-se num vir-a-ser: paga-se a previdência por trinta anos pra se ter direito à aposentadoria, estuda-se como louco pra se alcançar um diploma, a fábrica de chocolate acelera as atividades no que a páscoa se aproxima, a de brinquedos apressa-se nos meses anteriores ao natal.

Nietzsche tinha suas contradições, mas recolho dele uma imagem de que gosto muito, do “Assim Falava Zarathustra” (“Also Sprach Zaratustra”):

a de que o homem é uma corda estirada entre o animal e o além do homem – uma corda sobre o abismo (“Der Mensch ist ein Seil, geknüpft zwischen Thier und Übermensch,—ein Seil über einem Abgrunde”).

Isso me faz pensar no homem das cavernas de um lado, Neil Armstrong do outro. E na frase que ele deixou na Lua:

– “É um pequeno passo para [um] homem, um salto gigante para a humanidade”. (“That’s one small step for a man, one giant leap for mankind.”).

É quando me lembro, sempre, de que costumamos dizer: “Quando o homem inventou a roda, quando o homem compôs a Nona Sinfonia, quando o homem criou o computador”, etc, etc. É claro que temos de incluir nisso “Quando o homem criou a arma de fogo”, “Quando o homem fez a Bomba Atômica”, etc etc – o lado Mister Hyde do Doctor Jekyll, o Rei Davi que passa o carro com as rodas ferradas nos inimigos deitados sendo o mesmo que enleva Saul com seus cantares, o Da Vinci que desenha granadas para os príncipes quando não é o Leonardo que pinta A Ceia.

E volto ao velho “O Fenômeno Humano” (Le Phénomène Humain”) em que Teilhard de Chardin resume a evolução, estabelecendo que isto aqui foi, primeiro, uma geosfera, depois biosfera e vivemos a noosfera (“esfera do pensamento humano”, em que a imagem que se vê no Gênesis 2:7 ganha outro sentido:

– O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente”

Hesíodo tem coisa semelhante, na mitologia grega. Escreveu que Epimeteu fez o homem do barro e o irmão – Prometeu – deu à criatura o fogo, que era exclusivo dos deuses, pelo que foi agrilhoado ao Cáucaso, que ganha, com isso, um toque de Calvário.

Ou seja: nós, na verdade, somos, todos, nada mais, nada menos, do que “frutos”, desdobramentos da Terra.

Bem. Embora haja outras causas, a morte, que destrói os indivíduos, é a base de toda a nossa angústia. Mas acho que Bergson joga uma luz no assunto, em “A Evolução Criadora” (“L´Évolution Créatice”):

– “Como deixar de reconhecer que a colmeia é realmente, não metaforicamente, um único organismo, do qual cada abelha é uma célula unida às outras por laços invisíveis?” (“comment ne pas reconnaître que la ruche est réellement, et non pas métaphoriquement, un organisme unique, dont chaque Abeille est une cellule unie aux autres par d’invisibles liens ?”)

Que laços invisíveis? Schopenhauer conclui que o mundo é movido por uma insaciável Vontade, no que acertou, e que só tornaremos a vida tolerável se eliminarmos de nós o desejo, e errou, pois, se conseguíssemos esse objetivo egoísta, não teria havido, não haveria a Evolução! Fomos programados para essa insatisfação eterna para trabalharmos sintonizados com a Natureza, de que fazemos parte, e o mal está em não entendermos isso. Num remotíssimo catecismo aprendi que o homem foi feito para amar e servir a Deus, uma entidade superior, de infinita bondade, acima de nós, pecadores miseráveis. Errado. Espinosa diz que “Deus sive Natura”, (Deus ou Natureza, ou seja: “Deus quer dizer Natureza”), o que nega o conceito de um criador pessoal – tipo Brahma ou Jeová.

De onde vem o erro? Da necessidade milenar que se criou de uma “central de inteligência” no universo. Em “Estruturas da Natureza – Um estudo da interface entre Biologia e Engenharia”, de Augusto Carlos de Vasconcelos, há uma parte que me fascina mais que as outras: a dedicada ao reino vegetal. É fantástica a constatação de que um ser sem cérebro, como uma árvore, apresente reações tão eficientes ao meio ambiente. “Aquilo que um engenheiro de estruturas metálicas costuma fazer para contraventar as paredes finas de colunas tubulares, a Natureza faz automaticamente à medida que a planta cresce. E o faz com grande perfeição!” Ele documenta raízes que dão a volta em enormes obstáculos, atrás de nutrientes, ou estrangulam construções que atrapalham tal busca.

– “Elas obedecem a um comando ainda não totalmente compreendido”.

É como se o enxame, a árvore, a humanidade formassem… computadores. Vejo cinco vasos de antúrios, na minha casa, florindo ao mesmo tempo e, no impressionante documentário “A Marcha dos Pingüins”, de Luc Jacquet, milhares de aves de smoking partindo, de repente, para uma jornada enorme pela Antártida, a pé, enfrentando ventos terríveis, até o local ideal para o acasalamento e a reprodução. O quê, nos antúrios e pinguins, diz: “Tá na hora”? Vejo minha impressão digital num vidro e me pergunto “Como se formaram estas minhas linhas datilares exclusivas, sem que se soubesse… como são as dos outros?”

Os avanços tecnológicos produzidos pelas duas grandes guerras mundiais e pela Corrida Espacial agiram como… provocações no surto de criatividade e empenho do ser humano. A pílula anticoncepcional surgiu exatamente quando a explosão demográfica começava a sufocar a Terra.

Pergunto: estávamos conduzindo os acontecimentos?

O Tempo avança para um objetivo que nos esforçamos por alcançar, de integridade com o Todo. Eu não o alcançarei, você não o alcançará, mas o Homem, certamente, sim. Quando? Chardin deu a esse momento o nome de Ponto Ômega.

W. J. Solha: romancista, poeta e ensaísta paulista radicado na Paraíba, é também dramaturgo, ator, artista plástico e publicitário, com vários livros publicados e premiados, transitando em várias frentes de nossa cultura; um artista "multimídia" por excelência.

E-mail: waldemarsolha@gmail.com