O chão se toma de líricos laços. A viagem é longa e escorre pela lama. É um partir descalço e rendido que, talvez, não lhe sirva para nada. O destino aprisiona-o como a uma gôndola prateada sob um céu de aço. Não há pilares de sabedoria sem que antes haja consciência. Bento é o desejo de mármore ao fundo, sentimentos de não pertencimento, urgências e poderes no coincidir da fúria que lhe amplifica reflexos dos quais ele é, espontaneamente, escravo, como se ele surgisse de algo irresgatável, onde a esterilidade lhe foi cadência; não seria a velha ovelha de vestimentas fúteis e omissas. Nem o mordaz tentáculo de falseamento, confronto ou qualquer lapso brotado das matas ainda disponíveis, das alcateias intactas. Irônico, Bento se veste do ácido magnetismo, dos afazeres ordinários e não se paralisa diante do sarcasmo com que é hediondamente apedrejado. Não lhe pertencem aqueles substantivos derrotados pelas bagas da discórdia. Não se deixa vencer, embora dê essa impressão, num primeiro acesso.

Bento se eleva contrito nas radiações com que atravessa as terríveis atrocidades, num êxtase aveludado que lhe abranda as tragédias, as infâmias silenciadas nas encenações indeclináveis de um surdo desespero. Como a habilidade de moldar as estalactites edificadas na fissura das origens, deixa-se extravasar num encontro absurdo entre obstáculos e amor porque, feliz, necessita chorar: “Tantas são as quedas em que o meu coração rebate. Tudo se cala inopinadamente feito uma fera fustigada por caçadores inclementes, códigos e geografias que não se abrandam nos dilúvios – apenas uma figueira ressequida no que há por acontecer e, silenciosa, me conduz até onde não sei”.

Bento é a espontaneidade absurda do que resta do nascer continuado, a resplandecência de não necessitar de nada que o assome. “Terás sempre o paraíso se não te perderes da tua circunstância. O caminho das pedras não é mesmo das pradarias, cujas reiteradas vogais são cálidas canções de oferta”. Diz-lhe Magni que o vigia instintivamente.

Ele afasta da nuca o lenço que a vida lhe empresta. Do que vem a ser não ter a definição do nome da mãe ao longo de uma vida inteira e precisar libertar o próprio pai do estigma do gigante. Sonhar é uma preexistência fecunda. Dar o melhor de si é a única alternativa digna. De ser tão forte. Na mente, organizam-se pendidos extravios, torpores. A verdade não é ingênua e sabe esconder-se como ninguém. É nas inóspitas voragens que Bento prende o contágio e alarga a ousadia, como um discípulo nupcial e simbólico. “Não desperdiço nenhum instante, comungo como suntuosa fênix, com assombroso amor o que existe, o terror desconhecido, o colossal, o invisível. Tenho uma faca acima da cabeça. A ferida só cicatriza quando é afastada do que a faz ferver. Há uma asfixia compactada num relógio de corda curta que conta o tempo com insidiosa insistência: What is this? Please, tell me! Vós todos, cuja sede se perde nas pontiagudas agulhas da expiração e inspiração, – que o trato respiratório é avariado pelo frio sobrevindo, sobrevoado. Vigiai e viajai. Com textos que tilintam como cristais quando se tocam. Eu e meu total desassossego”.

Tere Tavares: escritora e artista visual, residente em Cascavel, PR, autora dos livros Flor Essência (2004), Meus Outros (2007), Entre as Águas (2011), A linguagem dos Pássaros (Ed Patuá 2014), Vozes & Recortes (Ed Penalux 2015), A licitude dos olhos (Ed Penalux 2016), Na ternura das horas (Ed. Assoeste 2017) Campos errantes (Ed. Penalux 2018), Folhas dos dias (Selo Ser MulherArte Editorial, 2020), Destinos desdobrados (Ed. Penalux, 2021) e Diário dos inícios ( Metanoia Editora, Selo Mundo Contemporâneo Edições, 2021) . Conta com publicações em antologias, jornais e sites literários nacionais e internacionais. Integra a Academia Cascavelense de Letras. Blog: http://m-eusoutros.blogspot.com/ Facebook: https://www.facebook.com/tere.tavares.1

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