Dois romances ocupam lugares de destaque na obra de Ernest Hemingway (1899/1961) e estão entre os mais lidos de todo o mundo. Refiro-me a “Adeus às armas” e “Por quem os sinos dobram”, o primeiro deles considerado por alguns críticos como o melhor romance americano do século passado. Ambos os romances têm fundo memorialístico e muitos episódios coincidem com fatos vividos pelo próprio escritor em sua movimentada e rica existência. Neles o autor intercala suas ideias, pensamentos e confissões, enriquecendo as narrativas e se revelando por inteiro através dos personagens. O primeiro romance é ambientado durante a I Guerra Mundial e o segundo no decorrer da Guerra Civil espanhola, ou seja, ambos são autênticos romances de guerra, neles se misturando o amor e a tragédia. Nesses livros Hemingway esbanja sua apurada técnica do diálogo em páginas que serviram de lições para incontáveis escritores.

Tal como Hemingway na vida real, o herói do primeiro romance, Frederic Henry, se alista no exército italiano como motorista de ambulâncias e segue para a Itália. Logo no início é ferido com gravidade e conduzido a um hospital militar em Milão. Durante o prolongado internamento inicia um tórrido romance com a belíssima enfermeira inglesa Catherine Barkley. Recuperado, é reenviado ao fronte e tem início uma sucessão de fatos impressionantes, dentre eles o relato da célebre retirada de Caporetto e uma fuga cinematográfica em que mergulha no rio com as balas zunindo à sua volta. Consegue encontrar a namorada, com quem se considerava casado, e ambos fogem para a Suíça em um pequeno bote, atravessando o lago durante uma noite pesada e interminável. Lá se instalam enquanto progride a gravidez de Catherine, já anunciada em Milão, até que ela e o bebê morrem no hospital em decorrência de problemas do parto. Os episódios finais, descritos com extrema habilidade, constituem páginas emocionantes da melhor literatura ocidental. Só e desesperado, Henry sente-se vazio e oco ao caminhar sob a chuva para o seu hotel.

“Por quem os sinos dobram” teve seu título inspirado em um verso do poeta inglês John Donne. Nele, Robert Jordan, dinamitador americano, está a serviço dos republicanos na Guerra Civil espanhola. É encarregado de explodir uma ponte em momento certo e adequado para impedir o ataque franquista. Junta-se aos guerrilheiros que lutam nas montanhas e ali conhece figuras impressionantes como Pablo, sua mulher Pilar e El Sordo, além da jovem Maria, que fora vítima de terríveis torturas quando esteve na mão dos inimigos. Enquanto aguarda o momento crucial, Jordan vive com os demais numa imensa caverna encravada nas montanhas e inicia um romance com Maria. Cenas terríveis se sucedem, como o massacre do grupo de El Sordo pelos bombardeios aéreos dos franquistas e o horripilante relato da eliminação dos fascistas sob o comando de Pablo. É um dos momentos mais arrepiantes da moderna literatura e sobre o qual escreveu Ênio Silveira: “Quereis ver a crueldade humana em seu fastígio? Estudai as guerras entre irmãos.” Em clima tenso, entre marchas e contramarchas, o romance transcorre até o momento exato da explosão da fatídica ponte que é, afinal, dinamitada com sucesso. Mas a reação é imediata e surpreende o grupo de Jordan. Este é ferido gravemente, impedido de andar e fugir do local. Os demais são instados por ele a escapar, inclusive a relutante Maria, enquanto ele permanece no local disposto a se defender até o minuto final.

Os dois romances são trágicos e seus heróis destruídos, um de forma moral, outro de forma física, mas ambos perecem sem piedade, provocando a inevitável comiseração do leitor. Hemingway não os poupa porque a guerra não poupa a ninguém, como não poupou a ele próprio quando ferido na I Guerra Mundial.

Os heróis de Hemingway são homens durões, estoicos e corajosos. Refletindo seu criador, são também intelectualizados e competentes nas análises que fazem do momento e do meio em que agem. Passagens antológicas por eles expressas ganharam o mundo. “Aos (homens) que trazem coragem a este mundo, o mundo precisa quebrá-los, para conseguir eliminá-los, e é o que faz. O mundo os quebra, a todos; no entanto, muitos deles tornam-se mais fortes, justamente no ponto onde foram quebrados. Então, aos que não se deixam quebrar, o mundo os mata” – reflete um deles.  “A escultura sempre me pareceu uma arte melancólica – somente o bronze me diz alguma coisa. Mas bustos de mármore me dão a ideia de cemitério.”  Sem dúvida uma opinião do autor, grande apreciador da arte, em especial da pintura, colocada na boca de seu personagem. Refletindo a dura experiência de ferido de guerra, em que quase perdeu uma perna, escreve: “Aquele joelho era do Dr. Valentini; só o outro era meu. Os cirurgiões fazem em nosso corpo coisas que são mais deles do que nossas. As tripas e todo o interior eram meus. A cabeça era minha também. Mas de que servia a cabeça naquele momento? Só para guardar recordações e nem eram tantas assim.” Solitário no silêncio de uma trincheira molhada, o personagem analisa: “Você toca a sua vida achando que ela tem um significado e sempre acaba não significando nada.”  Mais adiante, repete uma lição que Hemingway não se cansava de ministrar aos outros escritores: “Ele escreveria um livro, após passar por tudo isso. Mas somente sobre coisas que realmente conhecera, verdadeiras, e sobre o que sabia.” Escrever sempre com a verdade e só a respeito daquilo que de fato conhece. Fecho estas notas registrando a surpreendente declaração do velho guerrilheiro Anselmo, curtido pela guerra, de que não gosta de matar pessoas.        

O passeio pelos romances de Ernest Hemingway é um mergulho no mundo tenebroso da guerra, essa tragédia absurda e sem sentido na qual os homens vêm se afundando sem cessar ao longo da história. E os personagens revelam seus dramas pessoais e íntimos enquanto convivem com a violência e a brutalidade em que se viram envolvidos. Inspiram no leitor o sentimento pacifista que deveria nortear todo ser humano.

Para completar, é uma escrita límpida e precisa, simples e elegante, que fascina do início ao fim. Como diz Gilberto Amado, livro bom faz bem à alma e traz felicidade.

Enéas Athanázio: escritor e jurista catarinense, uma das maiores autoridades do país sobre cultura indígena, colunista da revista Blumenau em Cadernos e do jornal Página 3, é autor de mais de cinquenta livros, entre eles Meu chão, O perto e o longe e O pó da estrada.

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