Estava sentado na praia, pés meio afundados na areia, ouvidos nas ondas, olhos no mar, e então, na Marieta, subitamente em pé ao meu lado, uma latinha de cerveja na mão, um sorriso no rosto e um vestido que esvoaçava, estendeu-me a lata, recusei com um leve aceno, e ela se sentou, “tá ventando aqui”, tirou uma mecha de cabelo da boca antes de bebericar a cerveja, “você gosta de olhar o mar, né?”, julguei ser daquelas perguntas que não se responde, não respondi, “já te vi aqui outras vezes”, demorou-se mais na palavra “outras” para deixar claro que havia sido muitas, permaneci calado, já que aquela nem era uma pergunta, “me dá agonia”, ensaiei questionar o que a agoniava, mas ela foi logo esclarecendo “não o mar, o mar é lindo, é esse silêncio”, tremelicou a cabeça e ergueu os ombros, como criança com nojo de jiló, e foi estranho dar-me conta de que eu fazia o possível para estar ali todos os dias justamente para ouvir o que ela acabava de chamar de silêncio.

Balançou o corpo e tocou meu ombro com o seu, “vai entrar?”, “entrar?”, “na água”, espichou o pescoço, apontando o mar com a ponta do nariz, “agora?”, “tem medo?”, “do quê?”, “de entrar no mar, no escuro”, olhei para o céu, como se quisesse confirmar a escuridão da noite, e quando voltei a ela, não sei se havia me demorado muito encarando as estrelas, mas estava quase deitada de barriga para cima, apoiada nos braços, esquecida do mar, do escuro e do meu possível medo de entrar na água. “Você é daqueles que gostam do silêncio pra pensar na vida”, disse lentamente como se me analisasse, e seus olhos, em primeiro plano, esperando minha confirmação, disputavam minha atenção com o líquido espumoso que deixava sua lata, tombada na areia. Ficamos um tempo assim, ela olhando para mim, eu olhando para ela e para a cerveja se esvaindo, e sem que eu dissesse nada, ela continuou, “mas eu não, quando fica silêncio eu só consigo ficar pensando que tá silêncio”, achei graça, e ela reforçou sua ideia “minha cabeça fica repetindo nossa que silêncio, meu Deus que silêncio!”, riu, jogando a cabeça para trás e o tronco para frente, terminando sentada novamente, mais perto de mim do que antes.

“Você nunca mais apareceu”, não entendi sua cobrança infundada, uma vez que o curso havia acabado, não havia motivo para que eu aparecesse, “a galera vem hoje”, não soube se perguntava quem era a galera ou para onde, e ela sanou as duas dúvidas sem que eu dissesse uma palavra, coisa de pessoas que têm agonia do silêncio, “a Betinha”, a imagem da Betinha formou-se em minha mente, “o Fran”, lembrei da boina, “aquele da boina”, lembrei do Fran, o cara que usa boina na praia, “a Beca e a Lu, sabe?”, sabia, “estão vindo pro Menão”, virou bruscamente e apontou e o bar da esquina, que eu conhecia há anos, da porta para fora. “Você vem?”, “eu?”, não pude evitar que minha cabeça chacoalhasse para a esquerda e para a direita, três vezes, ela tomou fôlego para tentar me convencer, mas seu celular tocou, “oi Beca”, foi se levantando, bateu a areia do vestido, virou pra mim e falou “te vejo depois”, sem emitir som algum, só mexendo os lábios exageradamente e movimentando a mão naquele sinal circular, e foi caminhando para a avenida.

Voltei para o som das ondas, embora a voz de Marieta ainda reverberasse no ar, “tem medo?”. Quase uma hora depois bateu a fome e eu e a latinha de cerveja sem cerveja da Marieta fomos até o quiosque do Gil, “o de sempre, camarada”, falei, referindo-me ao sanduba de queijo branco e suco de melancia, quase uma hora de sossego entre o pão e o suco, e quando eu estava para engolir o último pedaço vi Marieta se aproximando, ela, seu vestido esvoaçante e a galera. Sua voz chegou antes do seu corpo, “devia ter ido a gente”, segurei o último pedaço do pão na boca, “olha a galera aí”, olhei, “oi”, “oi”, “opa”, “e aí, beleza?”, respondi um oi que valeu para todos, que já inspecionavam o local em busca de cadeiras, como se não tivessem acabado de sair de um bar. A Beca gritou para o Gil “algo doce, o que tem de doce aí, moço?”, o Gil, conferiu seu próprio quiosque como se não o conhecesse, “salada de frutas?”, apesar da cara feia, ela e a Marieta aceitaram. Então, a conversa cheia de risos, gritos e palavrões, que eu já ouvia desde quando estavam atravessando a avenida, recomeçou, era como se as palavras que saiam da boca do Fran acabassem na boca da Lu, as da Beca enchessem a boca da Marieta e todas acabassem nos meus ouvidos. Levantei e fui caminhando em direção à praia, “onde você vai, João?”, virei, mas não disse nada, fui pisando a areia até pisar a água, molhando o corpo e a roupa, ouvindo ondas que batiam em mim. Não, eu não tinha medo.

Fernanda Caleffi Barbetta: nascida na cidade de São Paulo, é formada em Jornalismo e pós-graduada em Comunicação Social, tendo publicado os romances Futuros Roubados e Passados Revelados (2017/2018), a coletânea de contos 30 Textos para Descontrair (2019) e o livro de poesias Já não me cabem as rimas (2020); em 2021, lança o livro de microcontos Iceberg, na coleção III do Mulherio das Letras, 2022; mantém o site "Entre Versos e Prosas" (www.entreversoseprosas.com.br) e faz parte dos coletivos "As Contistas" e "Trupe da Escrita".

E-mail: fcaleffibarbetta@gmail.com