Quando me preparava pra escrever os versos de cordel e martelo agalopado da “Cantata pra Alagamar” para o maestro José Alberto Kaplan, já quase nos anos 80, li – do nosso protagonista, o então Arcebispo da Paraíba, Dom José Maria Pires – o livro cujo título tem a ver com a nova publicação acima, do Affonso Romano – grande poeta, fabuloso crítico de arte e intenso cronista… também mineiro: “Do Centro para a margem” (Editora Acauã, Paraíba, 1978). Nele, o amigo – que perdi recentemente – exprimia o espírito do movimento… descentralizador, em favor dos oprimidos, que ele e Dom Hélder, Dom Pedro Casaldáliga e Dom Paulo Evaristo Arns tentaram implementar no país, na época, até que João Paulo II – conduzido pela eminência parda, futuro Bento XVI – disse Basta. Ao cantar o épico local, nós, pequeno-burgueses, Kaplan – judeu, da UFPB; eu – ateu, do BB, embarcávamos na mesma operação não-violenta, nada católica, mas gandhiana, de resgate dos nossos camponeses sem terra, valendo-nos de sua própria linguagem. Buscávamos redefinir… centro e periferia – ou margem.
O livro de Affonso Romano tem três ensaios, desenvolvidos de palestras suas. O terceiro é “Competitividade e arte”. No segundo, “Autonomia do sujeito na arte”, cita este trecho de meu livro “Trigal com Corvos”:
– Sócrates disse / “Só sei que de nada sei”./ E Arcesilau / com muito humor e sutileza: / “Eu / nem disso tenho certeza”.
… mas, seguindo meu teimoso princípio de que EM ARTE, O TODO É SEMPRE MENOR DO QUE SUA MELHOR PARTE, destaco o primeiro estudo, que – por sinal – tem o título do livro: “Cultura Contemporânea: redefinindo centro e periferia”. Nele reencontro o autor que me empolgou em “BARROCO – do quadrado à elipse”, com sua percepção clara do mundo, alicerçada numa erudição que chega a parecer casual, de tão despojada. É quando você sente que Affonso “lhe tira as palavras da boca”, principalmente no tópico “Estruturando o pasmo”, em que enumera onze considerações sobre como se vê o corpo, hoje; como se vê a roupa, segunda pele; os gêneros; o conceito de família; o discurso erótico entre os casais; a abolição do público e do privado; o embaralhamento da noção de esquerda e de direita; a volatilidade do capital; a derrubada de regras e convenções linguísticas e “tudo que era antiarte e não era arte virou arte”. Essa exposição, com os seguros e perspicazes prolegômenos e posfácios, é antológica.
Se o título do livro me levou a de Dom José Maria Pires, essa… redefinição do centro e periferia… me remeteu ao distante Shakespeare, a quem Harold Bloom creditou “A Invenção do Humano”. Por que “invenção”? Porque um novo homem surgia na sua época – descentralizado do sistema solar – da atenção divina – por Copérnico, ainda que sem a confirmação científica de Galileu, o que só aconteceria em 1610, com a publicação do “Sidereus Nuncius” (“O Mensageiro das Estrelas”), seis anos antes da morte do inglês. Hamlet é um jovem confuso, como todos – ainda que nada geniais – que Affonso Romano nos descreve e que são a grande maioria de todos com quem a gente convive, hoje em dia.
REDEFININDO CENTRO E PERIFERIA (Editora UNESP, 2017) – esse livro (pequenino) tem que entrar na frente, em sua lista de próximas leituras.
W. J. Solha: romancista, poeta e ensaísta paulista radicado na Paraíba, é também dramaturgo, ator, artista plástico e publicitário, com vários livros publicados e premiados, transitando em várias frentes de nossa cultura; um artista "multimídia" por excelência.
E-mail: waldemarsolha@gmail.com