Em memória de K

 

Era um prédio antediluviano que se situava na avenida principal da cidade. Sempre que por ali passava, achava intrigante o aspecto de abandono daquele imenso monstro de concreto. Anos passando na frente dele; de súbito, tinha que resolver uma pendência ali dentro. Ao entrar, fui abordado por uma espécie de guarda e porteiro.

– Que vem fazer aqui?

– Preciso resolver um problema.

– A Repartição está quase fechando. Hoje não é possível, volte amanhã.

– Mas ainda são três da tarde.

– Por favor, não insista.

A porta descomunal é fechada em minha cara. Sinto uma leve vontade de esmurrá-la. Volto no dia seguinte, no período da manhã, bem cedo. O mesmo ser asqueroso me interpela.

– Que vem fazer aqui?

– Preciso resolver uma pendência, um problema, não é da sua conta!

– Não seja agressivo, pode entrar.

Ao passar por ele, outra porta colossal, tão grande quanto as da catedral da cidade. Outro homem, um pouco mais polido, vem falar comigo.

– Bom dia. Que vem o senhor fazer aqui, na Repartição?

– Preciso resolver uma pendência, uma Solicitação que fizera há alguns meses.

– Este é o Setor de Entrega de Senhas. No momento, todas as senhas do dia já foram entregues. Hoje não é possível, volte amanhã.

– Mas…

– Por favor, não insista.

E assim, durante meses, entrei e saí da gigantesca Repartição, avançando sempre um pouco mais, falando, dia após dia, com um funcionário mais graduado que o outro, sendo impedido de prosseguir a partir de determinado ponto e voltando no dia seguinte para ir até o último funcionário que me atendera, passando por todos os seus antecessores. Não sabia o nome de nenhum deles, mas decerto podia adivinhar todos os seus trejeitos, a entonação de voz, a forma de andar. Vários corredores daquele lugar já me eram por demais familiares – por pouco minha casa. Sabia de cor todo o caminho feito, do porteiro ao funcionário até então mais graduado na hierarquia da Repartição, o qual, por sua vez, chefiava o funcionário anterior, e assim sucessivamente.

Em um belíssimo dia iluminado por um sol apoteótico, porém, a sorte me resolveu sorrir. Pela inumerável vez, fazia o itinerário por aqueles largos corredores, quando notei passar por mim um sujeito com um rosto assustadoramente pálido, quase um cadáver ambulante. Olho para ele e não consigo evitar a pergunta:

– Quem é o senhor? Frequento o local há muito tempo. Nunca o vi por aqui.

– Sou o Chefe da Repartição.

Tremi por completo diante de tamanha comoção. Estava, por acaso, diante da Autoridade Máxima! Por um fio, meu rosto se mostrara um tanto branco quanto o dele. Não resisti:

– Preciso resolver um problema.

– Sempre estamos com problemas, não?! Qual o seu nome?

– Pode me chamar de K.

– Perfeitamente. Hoje não é possível, volte amanhã.

– Mas…

– Lembro-me de sua Solicitação. Já passou pelo Setor de Análise de nossa Repartição. Tenha paciência. Ela virou um Processo.

Thiago Andrade Macedo: escritor infiltrado no serviço público federal, advogado não militante, autor do romance policial, psicológico e filosófico O Silêncio das Sombras, também atuou como articulista do jornal A União; filho de pernambucanos nascido nas Minas Gerais, atualmente é um ex-nômade radicado em João Pessoa, Paraíba.

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