Maria Rosa não gostava do seu nome. Esse nome, escolhido por sugestão de seu avô, tinha sido herdado de sua avó materna. Seus pais tinham pensado em outro nome para a filha, Maria Júlia, mas então o avô disse que Maria Rosa seria melhor, um nome que carregava aromas e cores em suas letras. Mesmo assim, Maria Rosa não gostava do seu nome e por duas razões: a primeira, porque esse nome a fazia sentir como se fosse um artigo de segunda mão, ou até mesmo, como se sua identidade tivesse sido roubada, uma identidade que ela pensava, deveria ser só dela, como uma impressão digital, e depois, porque não sentia que esse nome estivesse carregado de significado e poesia, como dizia seu avô Guilherme, era mesmo só um nome comum, que se podia encontrar em centenas ou até milhares de registros por aí. Não que ela fosse contra o que é comum, corriqueiro e até ordinário, mas ela achava que merecia um destino melhor do que aquele depositado em sua bagagem, através de um nome reproduzido pela boca de todos, em todos os dias de sua vida, nome esse, que causava confusões repetidas vezes, quando alguém chamava sua avó e era ela quem atendia, ou vice-versa. Ela achava que merecia um nome que lembrasse a todos, que a vida poderia ser mais do que uma sequência de repetições.

Maria Rosa carregava seus dias com aquela sombra que pairava por trás daquele nome herdado de sua avó, que borrava sua existência. Ela transportava aquela carga sombria que entrava com ela no ônibus, que corria por ruas e avenidas até seu trabalho, quando pensava em seu emprego como caixa de supermercado. Sombra que a acompanhava sempre que fazia uma pausa para fumar um cigarro, durante as filas de banco, ao colocar roupa na máquina de lavar, ao pagar as contas, e principalmente, quando alguém perguntava seu nome e ela se via obrigada a repetir aquele nome em voz alta. Tinha mentido sobre seu nome em muitas ocasiões e inventara outros, mais sonoros e exóticos. Ela inventava uma fuga através de nome e sobrenome, e sabia que a relação que tinha começado com outra pessoa através daquela mentira, teria que durar um curto tempo porque a mentira não sobreviveria a um contato mais próximo. Seu desejo era encontrar um nome que pudesse desmontar o tédio, rolo compressor que a afinava, desânimo de gerações.

Maria Rosa chegava ao trabalho pontualmente. Tomava o mesmo ônibus, que fazia o mesmo trajeto pela cidade, e ela acabava sempre olhando para as mesmas coisas porque já conhecia aquele caminho em detalhes. Diante dos seus olhos, estavam as mesmas cores que tentavam falar com ela todos os dias, e mostrar que a luz criava nuances diferentes a cada dia, mas ela não conseguia enxergar. Ela vestia o mesmo uniforme, pensava as mesmas coisas todos os dias, sua cabeça era uma máquina de repetições à revelia do seu querer. Depois de todo o esforço que fazia para espantar os pensamentos repetitivos, ela reconhecia, impotente, todos os dias, pensamentos sombrios que se impunham, que pesavam toneladas, que a faziam parecer feita de pedra. O pensamento mais repetitivo, cruel como um prego que fosse martelado em seu cérebro, era esse: seu salário não permitia que pudesse comprar nada no supermercado sofisticado em que trabalhava como caixa, só podia assistir aos produtos que ansiava comprar, rolarem satisfeitos pela esteira logo à sua frente, ela pensava que com aquele salário não conseguiria investir em materiais para poder cursar uma universidade pública, pensava que nada iria mudar. Trabalhava em uma das lojas de uma cadeia gigantesca de supermercados, e os produtos enfileirados perfeitamente, uns depois dos outros, a convidavam a concluir que poderia apenas sonhar com compras melhores do que as que era capaz de fazer, com dias melhores que um dia viriam, com outro emprego que permitiria que ela sustentasse os custos com livros e materiais requeridos para se cursar uma universidade pública. Depois de passar horas naquele ambiente em que circulavam clientes de classe alta e média-alta, ela seguia para sua casa na periferia de São Paulo, uma casa grande e antiga, com a presença inacreditável de três árvores frutíferas no quintal de terra, horta e um jardim de flores. A precária casa rangia, os canos entupiam, as paredes cheias de rachaduras precisavam de reparos e pintura, dentre os eletrodomésticos, existiam alguns mais novos comprados com esforço, e outros quebrados, que ficavam encostados até que se pudesse consertar aquelas peças inertes e empoeiradas, objetos imóveis como pedras. Maria Rosa sofria, gostaria de poder renovar tudo, pintar paredes, reparar o que precisava de reparo, e ao olhar todos aqueles problemas que se acumulavam sem solução ficava angustiada, se sentia impotente.

Depois do expediente, outro ônibus lotado, as casas e edifícios de pedra se enfileiravam e pareciam falar em coro, que outro dia estava terminando. As ruas pareciam ser uma repetição de curvas malfeitas, os solavancos eram parecidos uns com os outros e numa repetição infindável, sacudiam as testas esturricadas de suor das pessoas que se espremiam dentro do ônibus. Ela olhava os rostos e percebia que eles não estavam apagados por toda essa repetição, ela conseguia distinguir traços únicos, ainda que escondidos, em cada pessoa que estava ali tentando afirmar sua identidade.

Dona Maria Rosa, sua avó, percebia que a neta estava afundando em abismos e vertigens. Procurava animar a neta com palavras, com afetos e alimentos que sabia que ela gostava. A neta respondia os pedidos da avó com uma voz que ia sumindo, levada por aqueles abismos retorcidos pelos quais perambulava, uma voz que se transfigurava em vertigens sinuosas e geladas. De sua boca quase não saíam palavras, e as que eram proferidas, tinham gosto amargo ou insosso, como se fossem uma mistura de folhas de boldo fervidas com água choca. A voz da neta era um fio que se pendurava e balançava, levado pelo massacre dos dias que se enfileiravam sem se ver um fim, dias que cortavam o sabor dos alimentos e o aroma das flores, porque aos seus olhos eram todos iguais. A avó pensava que aquilo não podia continuar, ela não podia deixar a neta sucumbir. E guardava num cantinho de sua cabeça, a intenção de trazer a neta de volta para os dias recheados de nuvens, que soltas, respiravam mais perto do sol que esquentava todas as criaturas. Sol que se empenhava em fazer brotar minúsculos brotos que sustentavam gotas de orvalho, mais minúsculas ainda, e que figuravam como carrossel em miniatura que girava sorrindo em todas as direções, que espantava as tristezas para o mais longe possível. A avó queria que a neta se lembrasse daquele sol que suspirava durante milênios, acompanhando a todos, respingando suas fulgurações para que plantas crescessem em demasia, para que insetos zumbissem festeiros e animais se procurassem para o acasalamento. A avó não tinha nada de corriqueiro, era uma humilde mulher com pensamentos sábios, complexos, e exalava uma vida incomum e arteira, como criança sempre pronta a brincadeiras que se expandem da tarde até a noite, como abelha brincalhona que tece mel com companheiras, como a rosa de seu nome que florescia íntegra, com espinho para ferir e aroma para atrair.

Dona Maria Rosa era mestiça de italianos com pernambucanos, e antes de vir para São Paulo, sua família vivia em Caruaru. Isso se notava em seu jeito despojado, nas comidas que preparava e que oferecia com generosidade para os que quisessem provar. As mulheres da vizinhança eram invejosas de sua comida, que inflamava as entranhas com volúpia, que inchava as narinas com aquela invasão gasosa de fumaças com sabor de temperos, que esquentava e purificava o sangue, como massa saborosa de memórias carregadas de geração em geração, e que se transfigurava em caldos, ensopados, sopas, pães modelados por suas mãos lotadas de veias grossas, mãos que pareciam ter sido escavadas por insetos que deixaram suas pegadas em terra molhada, rastros cheirosos de natureza que se transforma, como folhas de outono que se escurecem em marrom.

Naquele dia, mais uma vez, a avó trabalhou com afinco, em uma disciplina orgânica para preparar o alimento benfazejo, porque acreditava que aquela matéria iria enriquecer as fibras do corpo da neta, iria transformar a tristeza da neta em calor, em fluido amoroso que circularia em seu sangue, que tornaria suas juntas flexíveis, seu cérebro arejado e livre de pesadelos e preconceitos. Dona Maria Rosa picou o cotechino e os dentes de alho, se empenhou em fazer um caldo de frango generoso, que fumegava, soltando seus aromas que brincavam por entre talheres e toalhas. Os aromas saltavam e modificavam objetos e o ar ao redor, que perfumado, mudava os humores. Em português, cotechino virou codeguim, linguiça macia e cremosa, feita com carne e pele de porco, pimenta, sal, noz moscada e cravo. Veio com a imigração italiana para o Brasil, praticamente desapareceu das mesas brasileiras, mas ainda é muito consumido em um ensopado com lentilhas no norte da Itália. Dona Maria Rosa fazia o cotechino com as próprias mãos, e por mais que repetisse esse manuseio e manufatura, ela não sentia que aquilo era uma repetição, porque sempre via entre um e outro movimento, uma nova possibilidade. Percebia que a cada vez, os cotovelos se mexiam de um jeito peculiar para ajeitar a mistura, que a dose de pimenta tinha muitas nuances, que a luz que entrava na cozinha narrava as horas e cada segundo, com cores que se multiplicavam em combinações indescritíveis, e que mudavam imperceptivelmente, em um ritmo que se parecia ao desabrochar das flores, que parece ser igual aos olhos desacostumados, mas que tem o peso do tempo carregado por asas em movimento perpétuo e sempre distinto.

Depois, ela separou e lavou as folhas do almeirão, da escarola, da alface, e as rasgou porque achava que cortar com faca é agressivo demais para as folhas frescas que saíam de sua horta. Em uma tigela, arrumou as folhas com os tomates, e ficou tão alegre, ao admirar todo aquele frescor que dançava contente no fundo da tigela.

Sua despensa abrigava potes de geleias, imensos potes de picles de pepinos, beringelas, couve-flor, cenouras, cebolas e outros legumes e verduras, que adormecidos nos vidros, se banhavam do escuro. As sombras alimentavam os legumes e verduras com sabor conforme o tempo passava, assim como Dona Maria Rosa, que tinha sido tingida de beleza e sabor conforme os anos tinham seguido seu caminho. Na despensa, também estavam guardados com carinho, o vinho de ameixas, licores de uma só fruta, e outros licores, feitos de muitas frutas juntas, que dançavam misturando suas carnes em um caldo orquestrado pelo tempo. A avó trouxe daquela despensa, embalada pelas sombras, um belo pedaço de goiabada feita em casa, em tom que beirava o vermelho e que dava vontade de se morder e lamber, delícia que faz o corpo feliz, em festa.

Bateu manteiga com açúcar, até que um creme sedoso e amarelado brotou da tigela, então colocou as gemas, e o creme amarelou-se ainda mais em cor cremosa. Estava lá diante dos seus olhos, aquele começo da massa, que era belíssima. Depois, a massa esbranquiçou-se com a farinha e as claras em neve que foram adicionadas. No fogo, a goiabada amoleceu e virou geleia. Assou cinco bolos, e foi recheando todos eles depois de prontos, enrolando tudo, um depois do outro, até ter na sua frente o “Bolo de rolo” que sua neta adorava, tradição pernambucana que é como roda gigante, feita em tons de vermelho e creme. Naturalmente que a avó sabia que alguns desprezavam tudo aquilo, que achavam que cozinha era coisa de mulher, que cozinha é serviço menor, ou que mulher moderna não pode gostar de cozinha, ao que ela respondia em pensamento: “Quem não sabe ver a maravilha de beleza que existe entre farinha e feijão, quem não reconhece a complexidade de um bom prato de folhas verdes, não tem olhos e cérebro, precisa comer melhor para criar um cérebro capaz de perceber sutilezas. Comum é aquilo, ou aquele que está tapado ao aprendizado”.

Com a mesa posta, que ela observava com olhos aguçados, e via se modificar em frente aos seus olhos conforme a luz mudava, ela fazia um exercício para notar os detalhes que ainda não conhecia, ela via com afeto cada mudança conforme o tempo passava, esperando a neta que chegaria logo.

A neta comeu vendo televisão, Dona Maria Rosa entristeceu-se, não conseguiram trocar nem dez palavras. Ninguém, nem pai, nem mãe ou avó, tinham conseguido arrancar mais do que uns: “Tudo bem”, “Sim”, “Não”, “Gostei”, “Obrigada”, e por fim: “Estou cansada, vou dormir”.

A neta nunca tinha sido extrovertida, era de poucas palavras, trabalhava muito, estava sempre preocupada. Tinha uma personalidade disciplinada, um pouco severa, queria fazer tudo com perfeição, mas daquela vez o silêncio era exagerado e trazia outros motivos com ele. Na verdade, ninguém entendia muito bem Maria Rosa, mas se fosse possível olhar o que levava dentro, se veria que queria aventurar-se muito, o que julgava ser impossível para alguém como ela, de família humilde, com poucas chances e horizontes. Parecia severa e disciplinada, mas sua vontade, que permanecia bem escondida dos olhares de todos, seu sonho era ter outro nome e viver em outro lugar, viajar até os confins do outro lado do mundo, ir e voltar sem impedimentos, livre até de si mesma.

Dona Maria Rosa pensou que ficaria firme na sua investigação, entenderia como mudar aquele humor da neta, que parecia não acreditar em mais nada, a avó não compreendia por que a neta insistia em dizer que tudo sempre seria do mesmo jeito. Ela se sentia diferente a cada dia, ou até de uma hora para outra, e seus olhos sempre descobriam o inusitado. Como não ver que uma joaninha, que uma pétala de flor jovem ou em processo de amarelamento, quando se muda para se tornar mais murcha, são inusitadas? Através de sua observação, ao longo dos anos, conforme envelhecia, ela percebia que seus olhos cansados pareciam, ao contrário, mais jovens, porque viam miudezas que antes ela nem tinha tempo de ver. Conforme se aproximava da despedida do mundo, ela prestava mais atenção em tudo, se tornava mais terna, mais humana, mais solidária com as pessoas que conhecia, e que não conhecia, e mesmo quando se desentendia ou odiava as pessoas, ela fazia isso com toda sua força, como se estivesse se despedindo, e por isso, era como se fosse a primeira vez. Quando se despedia de cada dia que se ia, era com a cabeça cheia de um futuro sem fim, e enquanto dormia, seu perfume de flor ecoava pela casa toda durante a noite, embelezando um pouco o pensamento dos outros.

Dona Maria Rosa não se conformava que a neta se arrastava de cá para lá, indo da manhã até a noite, levada por aquele vento frio que a empurrava em meio aos desertos. Sabia que existiam problemas feios, e outros problemas horrorosos de tirar o sono, horrores que se amontoavam em gritos e choros em todos os jornais, mas pensava que se arrastar não era solução, cada um tinha que procurar dentro de sua cabeça e coração um caminho, no meio daquele labirinto de dores e emergir de lá mais forte, para dar a mão a outros que estavam ainda mais emaranhados nos espinhos. Ela não conseguia ficar assistindo tudo sem fazer nada, e por isso, desenhava uma vida mais cheia de sentido para si. Pensava em pessoas que poderia visitar, nas comidas que poderia cozinhar, em festas que poderia fazer, em músicas que poderia dançar, e não era só para o futuro que Dona Maria Rosa desenhava aqueles prazeres, ela já fazia o que podia desde já, depois da sesta ela ligava para alguém para animar a pessoa, fazia um lanche para o vizinho, dançava no seu quarto, lia bastante e cuidava de sua família, de sua horta e de suas flores. Não ligava a mínima se a chamassem de ingênua ou de excessivamente otimista, ela vivia.

A avó convidara a neta em muitas ocasiões para acompanhar seu trabalho com a terra, mas a neta estava sempre trabalhando, fazendo os serviços da casa, cada vez mais esfiapada pelas tristezas. Nos seus dias de folga, Maria Rosa passava quase o dia inteiro dormindo, levantava-se, comia, voltava para a cama, almoçava, via televisão, jantava e dormia, para enfrentar o ônibus lotado e o trabalho no dia seguinte. Aquela era a vida que levava desde que o pai tinha se acidentado, uma vida que parecia um acidente que se repetia como um pesadelo.

Todos os dias, Maria Rosa olhava logo à sua frente, para os produtos que deslizavam monótonos na esteira, e sonhava com estradas, umas depois de outras em ritmo circular, aquele era o seu sonho, aquilo que ela desejava que acontecesse, viajar, conhecer, aprender, se aventurar. Depois, engolia seco, cobrava a compra caríssima e ficava quieta como pedra. Se pelo menos, ela pudesse ter ido para a universidade, não estaria presa naquela rotina sem saída, mas não pôde, porque seu pai tinha sofrido um acidente de trabalho e não podia mais trabalhar, ela e sua mãe precisavam garantir o sustento de todos, quem sabe poderia retomar os estudos para o vestibular mais tarde, em algum momento do seu incerto futuro. A avó sempre tinha ajudado nas contas cozinhando para fora, mas nos últimos meses as vendas tinham despencado, as pessoas estavam com o dinheiro curto. A avó já fazia muito, cuidava da casa, cozinhava, fazia até demais para uma senhora da idade dela, e isso doía fundo em Maria Rosa, que gostaria que a avó estivesse desfrutando mais a vida. Mal sabia ela que para Dona Maria Rosa, desfrutar era viver em toda sua potência, viver o ruim e o bom porque achava que um não podia existir sem o outro. Dona Maria Rosa não procurava fugir, ela enfrentava tudo, dores, sofrimentos, risos, trabalho, lágrimas e festas, sempre confiava na vida que segue, ela sabia que outros rumos viriam depois.

Denise Courtouké: atriz e escritora paulistana, estudiosa das linguagens do teatro, dança, literatura, dramaturgia do corpo e do ator, participando de vários festivais de teatro nacionais e internacionais; assinou as dramaturgias teatrais “Camille Claudel, Divino Impulso”, com apresentações no Sesc Vila Mariana, “A hora da estrela”, no Sesc Pompéia, e “Entrevistas sobre a decadência”; entre seus títulos figuram os romances “Olhos feitos de poeira de estrela e névoas”, “Ventre de vegetação e lama”, “Relatos de sangue e vácuo”, o livro de contos “Com as letras da tua voz”, o livro de poemas “Rubros”.

E-mail: denisecurtouke@gmail.com