Hemingway aprendeu a construir paisagens verbais visitando obras de Cézanne. Burgess compunha um concerto e outro antes de escrever, “para apurar o ouvido.” Já vi Miguel dos Santos passando do ateliê de pintura para a área de seus fornos, a produzir sua cerâmica. Outro Miguel – passando de “dos Santos” para Ângelo, pintou a Sistina, esculpiu o poderoso Moisés, calculou a gigantesca cúpula de São Pedro e escreveu versos – sobre seu amante ou a corrupção papal.
O título acima deriva de um conto famoso do Cortázar: Todos os Fogos o Fogo, porque o fato é que – confirmando o autor de Adeus às Armas e de Por quem os Sinos Dobram, vi – ao produzir meus romances, contos e poemas – que a arte de quem faz literatura – poesia ou prosa – consiste justamente em também produzir imagens – tal como o fazem o pintor, o escultor, o cineasta, o coreógrafo e o diretor teatral – mas… virtuais, sem nunca dispensar a música das palavras. Como nos versos com que Affonso Romano de Sant´Anna abre o poema Pedra Fundamental, e que superam qualquer foto do monumento:
“A Catedral de Colônia
é uma escura montanha
de pedra, palavra e espanto”.
E não é poderosamente cinematográfica esta cena do Grande Sertão:Veredas, do Guimarães Rosa?:
“Levou na cara e nos peitos o cheio duma carga de chumbo fino. Cegou, rodou, entrupicado, arreganhava os braços, todo se sarapintando das manchas vermelhas que cresciam.”
Para o dia-a-dia de minha literatura, limitado – por décadas – pelo meu trabalho no Banco do Brasil – tive de ser prático: não tinha tempo de sair por aí com um caderno de notas, flagrando usos e costumes, daí que, cercado de livros de Arte, sempre usei suas ilustrações ou as de publicações de grandes fotógrafos, para o exercício da escrita. No meu poema longo Trigal com Corvos, por exemplo, digo, com certa ironia, que, ao olhar para uma foto de Sebastião Salgado, em que há uma corrente ajoelhando-se nos elos no que se derrama numa chapa de aço, criei algo como “a corrente ajoelha-se nos elos no que se derrama numa chapa de aço”.
Claro que não deveria me incluir como exemplo, quando falo de Miguel dos Santos, Miguel Ângelo, Hemingway, Burgess, mas acho que vale um depoimento pessoal sobre a estranha diferença entre o comportamento da mente de quem escreve e o de quem pinta ou representa, como se passássemos a estar ligados em canais diferentes da TV Mundo . O verbo corre frouxo na criação do escritor, obviamente. E isso, geralmente, angustia. Mas se ele lança mão de tintas e pincéis, algo lhe clica a tecla “mute” no cérebro, e as ideias passam a lhe vir não mais em imagens transliteradas, mas traduzidas em cores, linhas, luz, sombra, volumes. Daí o uso terapêutico da Arte, que gerou o Museu do Inconsciente, de Nise da Silveira.
Fascinou-me cruzar o Rubicão, ao parar de escrever, a fim de dirigir uma peça de teatro; atravessar o Delaware e produzir um busto em bronze do meu grande amigo, Dr. Atêncio Bezerra Wanderley; transpor o Mar Vermelho e participar, como ator, de um curta como A Canga – em que fiz um camponês na miséria da seca –ou um milionário de Boa Viagem, num longa como O Som ao Redor. Tive uma experiência curiosa, ao fazer uma pontinha que sequer foi aproveitada, no Eu Sou o Servo, do Eliézer Rolim: uma crise de choro ao terminar a cena em que sou fuzilado, seguida de violenta dor de cabeça, reações que jamais tive na vida real – com suas trombo-embolias e pistoleiros, entreveros pessoais e violentos acidentes de carro.
Gosto de ver Gulda ou Barenboim levantando-se de seus pianos e passando a reger as sinfônicas que os acompanham. Ou ver Chaplin, Woody Allen, Orson Welles e o próprio Clint trabalhando nos filmes que eles mesmos dirigem, Chico Buarque passando de um romance como Budapeste, para uma obra-prima musical como Morte e Vida Severina ou Gota D´Água. Ou Sartre produzindo uma preciosidade teatral como Mortos sem Sepultura, um romance como A Náusea e um tratado filosófico feito O Ser e o Nada, Ariano fazendo O Auto da Compadecida, A Pedra do Reino ou dando uma aula-espetáculo. Ou ver Hugh Jackman com lâminas saltando dos nós dos dedos das mãos, no papel de Wolverine, de repente surpreendendo como tenor no musical dOs Miseráveis!
O ser humano já fez e faz coisas terríveis? É o seu lado Mr. Hyde. Em compensação, como me sinto feliz ao vê-lo tantas vezes chegando ao sublime, por todos os meios a seu alcance.
W. J. Solha: romancista, poeta e ensaísta paulista radicado na Paraíba, é também dramaturgo, ator, artista plástico e publicitário, com vários livros publicados e premiados, transitando em várias frentes de nossa cultura; um artista "multimídia" por excelência.
E-mail: waldemarsolha@gmail.com